Dados Históricos sobre a Igreja Joanita – Parte 3

Se ainda não leu, veja as partes anteriores para melhor se situar neste texto.

Parte 0: Palaprat

Parte 1: Igrejas Vétero-Católicas e Bispo Matthew

Parte 2: A doutrina dos Episcopus Vagans & Bispo Wedgwood

Vamos agora à última parte de nossa história. Falaremos sobre o Bispo Leadbeater e a Igreja Católica Liberal. Também teceremos considerações sobre como é possível e válido aliarmos a Ortodoxia Cristã à Filosofia Hermética e como. Por fim, falaremos sobre a nossa Igreja Joanita, a ECASI.

Bispo Leadbeater

Charles Webster Leadbeater foi sacerdote da Igreja Anglicana, Bispo da Igreja Católica Liberal, maçom, orador, escritor e uma das mais influentes personalidades da Sociedade Teosófica. É certamente um dos maiores ocultistas do século XX.

Nasceu em 1854, em Stockport, Chesire, Inglaterra. Filho único de Charles e Emma, muda-se para Londres aos sete anos, onde seu pai trabalhou como balconista ferroviário, vindo a falecer dois anos depois da mudança, em 1862, de tuberculose. Além de ter se tornado órfão, o que já deixava as coisas mais difíceis, o banco onde as economias familiares estavam depositadas faliu, ficando a família na completa pobreza. Sem dinheiro para os estudos, trabalha bem cedo para prover o próprio sustento e o de sua mãe. Sua rotina começava pela manhã, prestando serviços clericais para a Igreja Anglicana e, à tarde, estudava por conta própria. Assim, aprendeu francês, latim e grego. Em determinada altura da sua juventude, compra um telescópio e começa a estudar astronomia.

Seu tio, William Wolfe Capes, sacerdote da Igreja Anglicana, influenciou Leadbeater em sua vida religiosa de tal maneira que, em 1879, ele foi ordenado padre na cidade de Winchester. Em 1881, morava com sua mãe em Bramshott, em uma choupana construída pelo tio, agora vivendo como professor e ministro da Igreja.

Interesses alheios à Igreja Anglicana começam a surgir e, na década de 1880, começou a estudar espiritualismo e mediunidade, inicialmente por meio do trabalho de Daniel Dunglas Home.

Em 1883, entrou na Sociedade Teosófica estimulado pelo livro “O Mundo Oculto”, de A. P. Sinnett, conseguindo o afeto da própria Madame Blavatsky^[1]Em uma cópia autografada de Leadbeater da obra “A Voz do Silêncio”, Blavatsky refere-se a ele como “meu sinceramente amado e apreciado amigo” e em uma dedicatória de “A Chave da … Continue reading. Torna-se, assim, aluno de Blavatsky e também vegetariano. Por volta dessa época, escreve uma carta a um dos Mestres Internos da Sociedade Teosófica^[2]Escreve a Kuthumi, recebendo, tempos depois, durante uma viagem de trem, a resposta à sua carta, materializada abruptamente no ar à sua frente., pedindo para ser aceito como seu aluno. Em 1884, encorajado por ter obtido uma resposta a esse pedido, viaja junto a Blavatsky para Adyar, na Índia. Nessa viagem, Leadbeater é visitado e treinado por alguns desses Mestres. Por meio de um árduo treinamento, que prosseguiu para o resto de sua vida, Leadbeater torna-se mais tarde um exímio clarividente^[3]Ao ler a obra “O Homem, de onde, como veio e para onde vai” podemos ver que ele previu algumas coisas que surgiram décadas depois. Suas investigações, junto com Annie Besant, sobre a realidade … Continue reading, capaz inclusive de acessar os arquivos akashicos^[4]Espécie de arcabouço, além do tempo e do espaço, de todo o conhecimento e experiência universal..

Durante o ano de 1885, Leadbeater viajou com Henry Steel Olcott, primeiro Presidente da Sociedade Teosófica, para a Birmânia e o Ceilão (agora Sri Lanka). No Ceilão, eles fundaram a Academia Budista Inglesa, lá permanecendo Leadbeater para servir como seu primeiro diretor em condições muito austeras. Essa escola expandiu-se gradualmente para se tornar o Ananda College, que agora tem milhares de alunos e conta com um edifício que leva o seu nome, em sua homenagem. Depois que Blavatsky deixou Adyar em 1886, para retornar à Europa e terminar de escrever “A Doutrina Secreta”, Leadbeater alegou abertamente ter desenvolvido habilidades de clarividência.

Ao poder investigar tão direta e profundamente os Mistérios, escreveu mais de 50 livros e artigos sobre os mais variados temas. Suas obras são inegavelmente lúcidas e compreensíveis. Mesmo os textos de Blavatsky tornam-se mais didáticos e claros com as exposições de Leadbeater.

Em 1889, Sinnett pediu a Leadbeater que retornasse à Inglaterra para ensinar seu filho e George Arundale. Ele concordou e trouxe com ele um de seus alunos, Curuppumullage Jinarajadasa. Embora lutando contra a pobreza, Leadbeater conseguiu enviar Arundale e Jinarajadasa para a Universidade de Cambridge. Ambos acabariam por servir mais tarde como presidentes internacionais da Sociedade Teosófica.

Após a morte de H. P. Blavatsky em 1891, Annie Besant assumiu a liderança da Sociedade Teosófica junto com o coronel Olcott. Besant conheceu Leadbeater em 1894. No ano seguinte, ela o convidou para morar na sede teosófica de Londres, onde H.P. Blavatsky morreu em 1891.

Infelizmente, sua habitual franqueza tornou-o alvo fácil para os detratores por toda a sua vida. Afasta-se da Sociedade Teosófica em 1906 para desvinculá-la de qualquer embaraço, tamanha as críticas à época, além do seu amor pelo movimento teosófico, que o levou a preferir dele se desligar a maculá-lo. Em 1908, quando Annie Besant torna-se presidente da Sociedade Teosófica, foi novamente admitido como membro.

Em 1909, Leadbeater encontrou Jiddu Krishnamurti, então com quatorze anos, na praia particular da sede da Sociedade Teosófica em Adyar. A família de Krishnamurti morava perto do complexo; seu pai, um teosofista de longa data, era empregado da Sociedade. Leadbeater acreditava que Krishnamurti era um candidato adequado a “veículo” do Instrutor do Mundo, Maitreya, uma alta consciência cuja aparição iminente ele e muitos teosofistas estavam esperando. O proclamado salvador daria início a uma nova era e religião. Leadbeater atribuiu o pseudônimo de Alcyone a Krishnamurti e, sob o título “Rendas no véu do tempo”, publicou 30 vidas passadas de Alcyone em uma série da revista The Theosophist, iniciada em abril de 1910. Elas variaram de 22.662 a.C. a 624 d.C. Alcyone era uma mulher em onze deles. Leadbeater ficou na Índia até 1915, supervisionando a educação de Krishnamurti. Mudando-se, depois disso, para a Austrália. Durante o final da década de 1920, Krishnamurti repudiou o papel que Leadbeater e outros teosofistas esperavam que ele cumprisse. Ele se desassociou da Sociedade Teosófica e de suas doutrinas e práticas e, durante as seis décadas seguintes, ficou conhecido como um orador influente em assuntos filosóficos e religiosos.

Voltando um pouco no tempo, em 1906, ao participar de uma missa, Leadbeater, por meio de sua clarividência, testemunhou as forças sutis por detrás dos sacramentos cristãos. Fez paralelos do que viu com as mais diversas tradições, ocidentais e orientais. Percebeu que o sacerdócio confere um poder sacramental que não pode ser entendido pelo pensamento lógico-positivista contemporâneo de tão profundo que era. Por outro lado, essa mesma clarividência tornava bem claros para ele os problemas dentro das denominações cristãs. Caso a liturgia fosse revisada e um ambiente propício fosse estabelecido, o fluxo dessas energias, que já era fantástico, poderia ser ainda melhor.

Tendo isso em mente, empreendeu a tarefa conjuntamente com seu amigo, o Bispo Wedgwood, que o consagrara ao Episcopado. Assim, nasce a Igreja Católica Liberal, igreja tradicional como qualquer outra, mas que defende a liberdade intelectual e individual, buscando cultivar em seus trabalhos um equilíbrio entre os aspectos cerimoniais, devocionais, científicos e místicos.

Após vários meses de muito trabalho, a primeira versão da Liturgia Liberal foi publicada, mas a primeira celebração pública acontece apenas em 6 de abril de 1917 em Sidney, na Austrália. A partir desse momento, o trabalho com a Igreja Católica Liberal torna-se a principal atividade de sua vida, embora seu trabalho com a Sociedade Teosófica tenha continuado. Além disso, continuou sempre organizando palestras informais na casa de seus alunos.

A adaptação da liturgia católica romana de sua época para a Igreja Católica Liberal procurou remover elementos que Leadbeater considerava indesejáveis como o antropomorfismo e as expressões do medo e da ira de Deus.

Anteriormente, Leadbeater havia escrito sobre a força dos sacramentos cristãos em “A Ciência dos Sacramentos”, uma das obras mais importantes do Esoterismo Cristão até hoje.

Leadbeater nunca reivindicou infalibilidade para si ou para a Igreja Católica Liberal, nunca impôs seu ponto de vista e sempre deixou seus discípulos totalmente livres. Nunca se colocou como portador da verdade única e nunca disse que não poderia estar equivocado mesmo nas visões e conhecimentos oriundos da sua clarividência e do seu acesso aos arquivos akáshicos. Havia alguns ensinamentos controversos na Igreja, como o vegetarianismo, mas os sacerdotes eram livres para discordar desses ensinamentos. Para Leadbeater, o mais importante era o poder dos sacramentos. Ele foi um homem à frente do seu tempo. Morreu em 1934, em Perth, aos exatos oitenta anos de idade.

Podemos dizer que o movimento Católico Liberal serviu (e ainda serve) a um grande propósito. Conduz a tradição apostólica a um diálogo com todas as religiões do mundo, ocidentais e orientais. Revive a ciência do sacerdócio. Dá dimensões sutis à liturgia cristã. Ademais, foi o embrião a partir do qual outras denominações cristãs inspiraram-se, direta ou indiretamente, para ter esse olhar mais esotérico/universalista/ocultista.

A Igreja Católica Liberal

Quando nos referimos a Wedgwood e a Leadbeater, discorremos sobre a Igreja Católica Liberal e tecemos algumas considerações sobre ela. Nesta sessão, revisaremos os pontos mais importantes e acrescentaremos mais alguns pontos para entendermos o que é referido como catolicismo liberal.

A Igreja Católica Liberal combina a forma tradicional de adoração sacramental com a mais ampla liberdade intelectual e o mais amplo respeito à consciência individual, daí o motivo do “Liberal” em seu nome. Defende a liberdade de pensamento e da busca religiosa, mantendo um equilíbrio entre os aspectos cerimoniais, devocionais, científicos e místicos. Tem como lema Adveniat Regnum Tuum (Venha a nós o Teu Reino) e seu patrono é Santo Albano.

Afirma a autoridade do Cristo, administra seus sete sacramentos, considerando-os meios eficazes de suas graças.

Embora sua liturgia seja inspirada na liturgia católica romana, remove dela tudo o que não é consonante à mentalidade teosófica, ocultista e esotérica dentro da visão da Igreja Católica Liberal (ou, mais particularmente, dentro da concepção de Leadbeater sobre isso).

Baseia-se nos mais diversos pensadores cristãos. Por exemplo, baseando-se em Orígenes, predica a perfectibilidade humana graças a um processo natural de evolução espiritual e, assim sendo, incorpora conceitos contemporâneos como o da evolução. Também encontramos nela ideias gnósticas. Proclama o caminho da Purificação, da Iluminação e da União com o Cristo em Deus. Por meio desse caminho, o fiel pode discernir por si mesmo as coisas do Espírito, de modo que a base religiosa não dependerá mais exclusivamente da fé, mas crescerá com o conhecimento e a experiência pessoal.

Devido ao seu olhar teosófico, ocultista e esotérico, percebe que a união com Deus não é atingida apenas por meio dela, a Igreja Católica Liberal, mas também pelas religiões não cristãs, afirmando que as dádivas concedidas pelo próprio Cristo, através dos sacramentos, aceleram a evolução espiritual da humanidade. Como dispõe em sua página oficial, “o que une os Católicos Liberais não é uma crença comum e imposta em um conjunto de interpretações teológicas, mas sim a aderência livre e amorosa aos ritos estabelecidos pelo Cristo”.

Não é nosso objetivo nos alongarmos mais sobre o que se trata o Catolicismo Liberal, sendo esse breve resumo suficiente para entendermos a visão particular que brota deste movimento.

Catolicismo “Oculto” – Aliando a Ortodoxia à Filosofia Hermética

Dizer que poderia haver um catolicismo “oculto”, mais próximo da visão particular das tradições que compõem o que chamamos de Tradição Esotérica Ocidental não é um absurdo. A história está repleta de católicos que eram ocultistas. A Cabala, o Hermetismo, a Astrologia e mesmo a Magia (Teurgia) foram apadrinhados por muitos papas e sacerdotes, ainda que a depender do período histórico tal envolvimento poderia resultar em ser perseguido pela Inquisição.

Lembremos também que o Cristianismo Primitivo também possuía as mais diversas seitas gnósticas que, ainda que mais à frente tenham sido relegadas ao campo das heresias, tanto os gnósticos quanto aqueles que foram reconhecidos como ortodoxos eram membros da mesma Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. A pluralidade de visões era totalmente normal mas, com o tempo, infelizmente, passou-se a defender uma única visão possível de Cristandade, relegando-se o resto para o subterrâneo.

Para o Bispo Stephan A. Hoeller, o relacionamento entre a Igreja e o Ocultismo pode ser visto psicologicamente como o relacionamento entre o ego e a sombra – “apesar dos conflitos, pertencem um ao outro e dependem um do outro das mais diversas maneiras”. Infelizmente, à medida que as considerações racionalistas vão tomando conta da Igreja, o Catolicismo vai se afastando do seu gêmeo oculto. Porém, continua o Bispo Hoeller, ainda hoje podemos ver mais interesses em comum entre os que estudam as ciências herméticas e os católicos tradicionalistas do que entre os católicos modernistas do Vaticano II e os protestantes. Usando a mesma analogia psicológica, se se procura chegar à individuação, ao invés de enxergamos tudo separadamente, não seria interessante podermos aliar as duas visões?

Wedgwood e Leadbeater, inconscientemente, instituíram relações demasiado profundas entre Catolicismo e Ocultismo. Tornaram-se, assim, pioneiros de uma abordagem mais hermética do Cristianismo Ortodoxo.

Não é exagero dizer que a visão ocultista e teosófica introduzida no culto sacramental da Igreja por eles teve implicações mais abrangentes e exerceu uma influência maior do que é discernível na superfície. Muitas pessoas impressionaram-se com a possibilidade de se afastar a real eficácia dos sacramentos do peso do dogmatismo e do moralismo ultrapassado. Pode-se perfeitamente participar dos benefícios concedidos pelo próprio Cristo por meio dos sacramentos sem ser forçado a seguir dogmas contrários às suas convicções internas. Assim, o Catolicismo Liberal foi pioneiro neste ponto, fazendo até mesmo com que a Ortodoxia cristã pudesse ser vivenciada e aprofundada por aqueles que possuem inclinações ao pensamento místico e mágico que permeia a Tradição Esotérica Ocidental.

Como podemos ler em nossa Epistola Fundationis, a nossa Igreja Católica Apostólica Joanita (Ecclesia Catholica Apostolica Sancti Iohannes – ECA S+I+) possui sucessões apostólicas de Palaprat, Matthew, Wedgwood, Leadbeater e muitas outras. É legítima herdeira da Igreja Joanita dos Cristãos Primitivos e da Igreja Vétero-Católica, bem como de outras sucessões apostólicas a ela agregadas. Perpetua exotérica e esotericamente os Mistérios Iniciáticos que permeiam a fé cristã, bem como as diferentes frutificações da Filosofia Hermética, proclamando-se em especial sintonia com as tradições cavalheirescas, sobretudo da ORDO EASIE-EASIA. Seus fundadores, os Patriarcas e Arcebispos +Dom Marcus Reginae Angelorum^[5]Vale acrescer que o Bispo Leadbeater é o patrono espiritual de +Dom Marcus Reginae Angelorum em suas tarefas apostólicas, pois, aos 16 anos de idade, ainda sem qualquer perspectiva de vir a ser um … Continue reading e +Dom Ioseph Céile-Dé Matris Sedes Sapientiae, detentores de dezenas de linhagens válidas de Sucessão Apostólica criaram-na como um corpo místico destinado justamente à perpetuação desses sagrados mistérios subjacentes à Tradição Cristã, velados ao longo dos séculos, mas sempre vivos, paralelamente às correntes gnósticas.

Neste ponto, terminando o nosso trabalho, conseguimos compreender como foi possível aliar a visão mais tradicional do Cristianismo Ortodoxo às ciências herméticas. Meditando sobre este tema podemos perceber as mais diversas ligações profundíssimas entre o ocultismo e a Tradição Cristã. Sendo assim, podemos apreender a importância de, como continuadores da Tradição, termos um veículo próprio que possa permitir aos seus membros vivenciar esta visão belíssima da Cristandade. O cristianismo místico joanita de Palaprat e o trabalho iniciado por Matthew, que resulta posteriormente num modelo de união entre a ortodoxia e as ciências herméticas legado por Wedgwood e Leadbeater, podem também ser contemplados aqui como elementos propícios a alicerçarem este mesmo veículo. Herdeira de todas essas tradições e vivenciando profundamente o seu espírito, tanto templário, quanto hermético, a ECA S+I+ é ainda profundamente alicerçada na Espiritualidade Mariana, entendendo Maria Santíssima, Rainha dos Céus e de todos os anjos como a verdadeira encarnação da Sabedoria Divina (Hagia Sophia) e perpetuando, no seio da ordem interna de cavalaria por ela abrigada (Militia Sedes Sapientiae – MSS), o “Segredo de Maria” (Secretum Mariae).