Iniciação Real e a sua relação com as ordens iniciáticas

O objetivo do presente texto é traçar diferenças básicas a respeito de um tema que suscita muitas dúvidas e confusões no meio das ordens e fraternidades iniciáticas tradicionais. Longe de colocar um ponto final em um assunto tão vasto e cheio de meandros, o intento da presente exposição está mais relacionado a um esclarecimento inicial que possa auxiliar o caminho de reflexão individual dos buscadores, do que qualquer outra coisa. As duas principais referências utilizadas para ponderar o assunto, estão em duas grandes obras ligadas ao veio francês da Tradição Esotérica Ocidental, que se expressa externamente através da Ordem Martinista, e elas são as seguintes: Os Arcanos Maiores do Tarô, de G.O Mebes e Meditações sobre os Arcanos Maiores do Tarô, de Valentim Tomberg

Grande Iniciação ou Iniciação Real

Estamos diante da Iniciação de fato, que é puro mistério, dádiva que vem do alto e frutifica nos terrenos livres do Espírito, por uma consciência já purificada de suas próprias inibições, preconceitos, bloqueios, paixões, devaneios e ignorâncias. Trata-se de uma experiência suprarracional e espontânea que celebra as núpcias alquímicas entre o indivíduo e a Divindade, nos laços eternos do amor. Estamos diante de um acontecimento misterioso que possui a qualidade da eternidade e rompe definitivamente com os muros descritivos e aprisionantes da razão, fato que explica a incapacidade da linguagem comum em descrevê-la a contento. Não pode ser fornecida por nada, nem ninguém, além da própria Divindade.

Essa Iniciação também é chamada de Mistério do Segundo Nascimento, pois, de fato, do ponto de vista ontológico, é o que ocorre, algo morre e algo nasce para que o entrelaçamento perfeito entre Deus e o Homem possa ocorrer, fazendo com que a divindade participe da experiencia humana e a humanidade participe conscientemente da presença divina. Essa fusão é capaz de transformar drasticamente a percepção do indivíduo que dela participa, já que aquele que passou pela Grande Iniciação, já não volta mais, uma consciência totalmente transformada e vivificada pelo mistério, volta em seu lugar.

Nos parece ser um fenômeno que mora no campo da percepção, um Iniciado Real já não consegue perceber o mundo, a vida e tudo que dela participa, da mesma maneira, é importante ressaltar que isso não é e nem pode ser algo artificial, já que estamos falando de alguém que, genuinamente, já não opera no mesmo nível de consciência que a as pessoas que não passaram por tal experiência, operam. A Iniciação Real possui vários níveis de consecução, a depender da alma que dela participa, fato que nos leva a entender que tais almas passaram por um longo processo de amadurecimento e desenvolvimento, preparação esta, que ao longo do caminho, certamente proporcionou alguns lampejos de percepção gradativos, no curso de uma ou várias encarnações, para aqueles que vêm na reencarnação uma possibilidade.

Iniciação menor fornecida pelas ordens iniciáticas

A iniciação fornecida pelas ordens iniciáticas é justamente a preparação citada no último parágrafo, para que um dia possamos vivenciar o Mistério do Segundo Nascimento, ou seja, a Iniciação Real. As Irmandades iniciáticas tradicionais tem o sério e importante objetivo de nos proporcionar essa preparação, desde que estejamos verdadeiramente compromissados com este nobre e hercúleo intento. As práticas de cunho mágico teúrgico, contemplativas, meditativas e energéticas, assim como os estudos presentes nos nossos currículos, tem por objetivo lapidar os nossos órgãos de percepção e toda a nossa anatomia sutil, para que, como verdadeiros receptáculos, estejamos prontos para receber e participar deste mistério. E aqui, o velho adágio alquímico se torna muito elucidativo: “para se fazer ouro é preciso ter ouro.”

Breve descrição das etapas do processo

G.O Mebes, em sua enciclopédia de ocultismo, explica que os rituais de iniciação fornecidos pelas escolas esotéricas são verdadeiros vínculos entre o indivíduo e uma corrente egregórica específica e tradicional, onde o iniciando é harmonizado e incluído na egrégora, que por sua vez possuem correspondência com os planos superiores. Através desse vínculo o indivíduo recebe a transmissão de um determinado influxo espiritual e mágico, através de um conjunto de símbolos específicos que vão impregnar o campo áurico e astral do iniciando, a fim de incentivar e estimular, sutilmente, o processo gradativo de transformação necessário ao acontecimento daquilo que Tomberg vai chamar de Iniciação Real, como descrito nos parágrafos anteriores.

Fica bem claro que o trabalho das ordens iniciáticas é bem importante, haja vista que a Iniciação Real só pode ocorrer em uma alma devidamente preparada através de um longo e árduo período de treinamento, e esse é o único e derradeiro objetivo de qualquer Ordem, Irmandade ou Fraternidade tradicional. Quando estamos trabalhando ritualisticamente em nossos oratórios ou em nossas Lojas e Heptadas, estamos a serviço de algo extremamente forte e profundo, que transcende nossa capacidade de compreensão, é importante que não nos esqueçamos disso, pois é muito fácil nos desviarmos do caminho, tomando os graus, comendas, pompa e circunstância existentes nas ordens, como boa comida para engordar o nosso ego, sempre sedento por sensação de controle e poder, desvirtuando assim, aquilo que serve apenas como uma efetiva organização de nossos estudos e trabalhos em prol da Iniciação, e transformando tais elementos educativos e organizacionais, em palanque para saciar os nossos anseios egóicos desvairados.

Outro perigo já citado por mim em uma oportunidade anterior, é a síndrome da erudição vazia, que acomete a maior parte de nós, a partir do momento que começamos a nos envaidecer com as nossas aquisições intelectuais, que ao invés de serem postas a serviço da reintegração, passam a servir de palco para o nosso ego complexado se locupletar com sentimentos de superioridade e pretensa realização espiritual. Como alerta Madame Blavatsky na Voz do Silêncio,” … Aprende, contudo, a separar o conhecimento mental da sabedoria da Alma, a doutrina do “Olho” da doutrina do “Coração”.” A razão, quando mal colocada, exerce império sobre nós, se não a submetermos aos propósitos da Grande Obra, ela nos engole e imperceptivelmente e nos desvia do Caminho.

Conclusão

Através de uma cautelosa reflexão, podemos perceber que as ordens iniciáticas tradicionais estão a serviço da Iniciação Real, e que é responsabilidade dos perpetuadores dessas tradições, assim como de seus membros, se esmerar na preservação desse propósito, para que a essência da Iniciação não se perca nas esquinas escuras do nosso ego, que facilmente pode deturpar os propósitos nobres dessas organizações, como qualquer observador honesto pode perceber que ocorre atualmente. Refletir sobre as nossas motivações constantemente e sobre os verdadeiros objetivos das ordens as quais estamos vinculados, é um exercício muito salutar e prudente, para que possamos manter acesa a chama que um dia poderá nos levar a experimentar o misterioso deleite nupcial da Grande Iniciação.

Fraternalmente,
Sâr Encausse


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