Estudos Tradicionais – Catecismos 1

Estudos Tradicionais
1ª Preleção

Tema : René Guénon

Quem foi René Guénon?

Descrever René-Jean-Marie-Joseph Guénon, ou simplesmente René Guénon, não é tarefa fácil, dada a extraordinária complexidade da sua personalidade e da sua produção intelectual. Nascido em 15 de novembro de 1886, Guénon foi matemático de formação e um filósofo metafísico cuja produção literária, tão abrangente quão profunda, lançou uma nova luz nos estudos dos domínios da transcendência, lançando os alicerces de uma escola de pensamento que se passou a denominar Perenialista (a fim de que se evitem mal-entendidos com homônimos, vale acrescentar que Guénon se referia à Filosofia Perenetambém como Tradição Integral). Tendo mergulhado no cenário ocultista francês que emerge entre o final do século XIX e o início do século XX, cujo expoente mais conhecido foi a Ordem Martinista fundada pelo médico francês Gérard Encausse (Papus), Guénon inicia seus estudos sobre o pensamento oriental, tornando-se talvez o mais erudito e profundo especialista nessa área, na sua época. Ao entrar em contato com o Sufismo, a mística islâmica, Guénon converte-se ao Islã, adotando o nome de Abd al-Wāḥid Yaḥyá (عبد الواحد يحيى) e mudando-se para o Cairo, onde permanece escrevendo a sua obra monumental e correspondendo-se com seus leitores até o seu falecimento, em 7 de janeiro de 1951.

Quais seriam os pontos essenciais do pensamento de René Guénon?

Embora seja desafiador e quiçá impossível resumir suas ideias, para os fins desta instrução básica, ousamos listar os seguintes pontos que mais se destacam no pensamento de Guénon:

– A crise do mundo moderno: o mundo moderno (que não se confunde com o mundo contemporâneo, isto é, o mundo dos nossos dias, pois Guénon remete essa crise já ao século VI a.C.) vem se afundando, de maneira crescente e vertiginosa, na ilusão do materialismo, nas superstições do progresso, na ideia de que a razão é soberana ao Intelecto, na ânsia pela mudança como algo desejável em si mesmo, no moralismo e no sentimentalismo. Tais noções são encontradas em A crise do mundo moderno (La Crise du monde moderne), obra que recomendamos enfaticamente como ponto de partida para a compreensão do pensamento guénoniano.

– Horizontalidade versus verticalidade: o pensamento horizontal distingue-se por ser materialista, mecanicista, raso e superficial, embora pretenda abranger a totalidade das coisas, ao passo que o pensamento vertical se destacapela sua profundidade e acurácia, derivadas dos princípios metafísicos que norteiam (ou deveriam nortear) a experiência humana. Reflexo dos nossos tempos, aqueles indivíduos dominados pela horizontalidade, que são a maioria, não têm dúvida a respeito de nada. Tais ideias encontram-se, sobretudo, na obra O simbolismo da cruz(Le Symbolisme de la Croix).

– O reino da quantidade versus o reino da qualidade: o pensamento moderno é cada vez mais quantitativo e cada vez menos qualitativo. A visão quantitativa de mundo reflete-se na fragmentação do conhecimento e na sua superespecialização, perdendo-se a visão de conjunto e, sobretudo, a profundidade intelectual. O indivíduo, ademais, passa a refletir apenas um simples número na sociedade, o qual, somado a outros números, forma coletividades genéricas e amorfas, sem qualquer distinção qualitativa quanto ao valor intrínseco do indivíduo, suas peculiaridades e habilidades. Guénon desenvolveu tais ideias principalmente em Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos (Le Règne de la Quantité et les Signesdes Temps).

– Os ciclos cósmicos: à luz do pensamento tradicional do Oriente, Guénon sustenta a noção de quatro ciclos cósmicos de decadência progressiva a afetar toda a humanidade. No Hinduísmo, esses ciclos são o Satya Yuga(a era da verdade), o Treta Yuga (a era dos três, alusão aos três avatares de Vishnu, quais sejam VamanaParashurama e Rama), Dwapara Yuga (a era do dois, alusão aos dois pilares preconizados pelo 4º avatar de VishnuSri Krishna, os quais são compaixão e veracidade)e Kali Yuga (a era das trevas, onde a ignorância e a maldade são a tônica), equivalentes às Idades do Ouro, da Prata, do Bronze e do Ferro descritas pelo poeta grego Hesíodo (século VII a.C.). Guénon trata dos ciclos cósmicos principalmente em A crise do mundo moderno(La Crise du monde moderne), Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus (Introduction générale à l’étude desdoctrines hindoues) e Oriente e Ocidente (Orient et Occident).

– Inversão: miopia espiritual e intelectual que vem assolando a humanidade, a inversão leva a que as pessoas enxerguem como progresso, avanço e crescimento o declínio de tudo o que realmente importa sob um ponto de vista qualitativo. Usando de um linguajar mais metafísico, tudo aq​uilo que É estará sujeito a uma entropia inerente ao SER, vale dizer, a uma decadência natural a que está sujeito tudo aquilo que se manifesta. Isso é uma verdade metafísica, mas o problema identificado por Guénon está em a sociedade contemporânea ver essa decadência como sinal de progresso. Mark Sedwick, um especialista no pensamento guénoniano, dá como exemplos de inversão algumas modas juvenis, que veem beleza na feiura, bem como a ideia de que se deve colocar todas as emoções para fora, ao invés de se incentivar o autocontrole emocional. Guénon trata da inversão mais especialmente nos livros A crise do mundo moderno (La Crise du monde moderne) e O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos (Le Règne de la Quantité et les Signesdes Temps).

– Pseudoiniciação e contrainiciação: a pseudoiniciação é a iniciação falsa conferida por algumas sociedades ocultistas contemporâneas, ao passo que a contrainiciação é aquela que combate a Iniciação Real, impulsionada por forças que lhe são contrárias. Para Guénon, parte considerável das escolas esotéricas da atualidade trabalham para a contrainiciação ou não passam de escolas pseudoiniciáticas. A partir dessa ideia, Guénon criticou os movimentos espíritas e as escolas ocultistas da sua época, cujo foco era o “temporal” e não o “real”. Na visão tradicionalista propugnada por Guénon, o verdadeiro esoterismo jaz no seio das religiões tradicionais tais como o Judaísmo, o Islamismo e o Hinduísmo, cujas expressões esotéricas são, respectivamente, a Cabala, o Sufismo e o Vedanta. Os ensaios de Guénon sobre o tema foram reunidos na obra Considerações sobre a Iniciação(Aperçus sur l’Initiation).

Na visão de René Guénon, a maçonaria conferiria a Iniciação, a pseudoiniciação ou a contrainiciação?

Na visão de Guénon, a maçonaria ainda poderia conferir a Iniciação, pois seria o último depósito tradicional do Ocidente, uma herdeira e perpetuadora dos verdadeiros mistérios iniciáticos do mundo ocidental. Ainda assim, a maçonaria somente poderia conferir a Iniciação Virtual (os Mistérios Menores), fundada na formação ética e moral refletida em símbolos e alegorias, mas não a Iniciação Real (os Mistérios Maiores), de cunho transcendente e interior. Tal afirmação, note-se bem, em nada desprestigia a maçonaria aos olhos de Guénon, vez que a Iniciação aos Mistérios Maiores (Iniciação Real) tem como premissa a Iniciação aos Mistérios Menores (Iniciação Virtual).Acresça-se que, para Guénon, a Iniciação Real é a conexão do indivíduo ao Mistério inerente ao SER ou ao Fluxo do qual flui esse Mistério. Para uma melhor compreensão do pensamento de Guénon a respeito, sugere-se a leitura da obra póstuma Estudos sobre a Franco-Maçonaria e o Companheirismo (Études sur laFranc-maçonnerie et le Compagnonnage).


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