A (Ainda) Incompreendida “Senda Cardíaca”

A expressão “Senda Cardíaca” ou “Via do Coração” foi cunhada por Papus, a fim de definir o tipo de trabalho por ele proposto para a sua Ordem Martinista, fundada no fim do século XIX.

Contudo, apesar de ele a ter explicado, esmiuçado e desenvolvido em muitos dos seus textos, vê-se ainda uma grande incompreensão a seu respeito entre os martinistas, ainda que já se tenham passado mais de cem anos dessa proposição.

Por vezes, verifica-se uma compreensão rasa dessa expressão, equiparando-a a toda a sorte de sentimentalismo e de romantismo. Por outras, veem-na como uma rejeição da “Via Mágica” ou da “Via Operativa” e uma opção rígida e míope pela “Via Mística” ou “Via Interior”.

A própria análise da vida de Papus, todavia, já seria suficiente para levar à conclusão de que não foi isso que ele quis dizer. Afinal, como o prolífico Dr. Gerard Encausse, escritor de centenas de obras e artigos nos campos da medicina e do ocultismo, poderia rejeitar o intelecto e priorizar o emocionalismo que ele tanto combateu nesses mesmos escritos? Como poderia Papus, que registrou experiências psíquicas e mágicas em suas obras, que criou o Grupo Independente de Estudos Esotéricos – GIDEE e que foi um mago e alquimista pretender rejeitar a “Via Ativa” e propugnar tão somente a “Via Passiva”?

A fim de poupar estas reflexões de um viés acadêmico, referências textuais serão evitadas, mas, do corpusliterário deixado por Papus, conclui-se que, ao equiparar o Martinismo à “Via Cardíaca” na sua interpretação pessoal dos ensinamentos do Filósofo Desconhecido, ele distingue (I) a via puramente intelectual da magia cerimonial e mesmo da Sociedade Teosófica florescente na sua época, (II) da via do teurgo, do mago que associa operações cerimoniais à disciplina da prece e ao cultivo da vida interior. Esta última é que seria a “Via Cardíaca” ou “Via Unitiva”, na qual se amalgamam harmoniosamente a “Via Intelectual”, a “Via do Sentimento” e a “Via da Ação”.

O coração, símbolo físico do centro espiritual do ser, refletiria essa amálgama e serviria como uma ponte áurea entre a ação e a intelecção. Essa analogia pode ser vista muito claramente na divisão martinista tripartite do ser humano em abdômen, peito e cabeça, bem como nas cores da toalha que adorna os templos martinistas.

Se o abdômen simboliza os nossos instintos mais básicos, mas também a sede da ação, e a cabeça é associada ao raciocínio e ao processo intelectual, o coração, como estação intermediária entre ambos, a sede do verdadeiro Eu, se prestaria a equilibrar ambos esses impulsos – ação e intelecção.

Por outro lado, se o negro expressa a materialidade mais densa e o branco a intelectualidade mais abstrata, o vermelho é o intermediário, o elo a vincular e a equilibrar esses dois polos, importantes sem dúvida, mas carentes de uma bússola ética e espiritual por si sós. Essa é uma das razões, dentre outras ainda mais herméticas, pela qual a cor vermelha assume papel de destaque no seio do Martinismo moderno elaborado por Papus.

O membro da Ordem Martinista (pouco importam, aqui, seus muitos ramos), portanto, estuda e reflete; ora e labora (em operações cerimoniais mais ou menos complexas), mas a tudo tempera com o impulso do coração, a força matriz e motriz da criação, ou seja, o puro Amor.

Mas há que se ter cuidado com essa palavra tão envilecida pelo seu uso vulgar: aqui se alude ao Amor e não ao amor; à verdadeira essência do divino em nós e na criação, e não ao sentimentalismo e ao romantismo que infelizmente ainda confundem muitos buscadores da Senda da Iniciação.


Comments

3 respostas para “A (Ainda) Incompreendida “Senda Cardíaca””

  1. Coração é ritmo, constância… Qualquer desequilíbrio nele torna nossa vida mais difícil de ser vivida. A Via Cardíaca se pauta nesse equilíbrio: orar e trabalhar, se fizermos apenas uma delas, nossa jornada não é completa.

  2. Quando suas ações são incondicionais, desinteressadas e seus pensamentos são sem julgamento, eis ai uma forma de agir por via cardíaca

  3. Bruno Arangio

    Palavras que iluminam minha compreensão sobre o assunto! Gratidão!

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