A Autoridade Natural e a Ilusão do Poder

Autoridade não é poder. O rei-filósofo, de acordo com Platão, é aquele que tem autoridade e exerce-a sem precisar fazer uso do poder. Tal reflexão faz-se importante no meio iniciático, pois pensar e fazer o oposto disso é estar a serviço da contra-iniciação e, infelizmente, muitos são os que batem às portas das escolas iniciáticas que, ao invés de buscarem o serviço impessoal aos moldes do rei-filósofo idealizado pelo grande filósofo grego, procuram uma espécie de poder temporal para satisfazer os seus próprios egos.

Sem nos esforçar muito podemos lembrar de escolas iniciáticas que possuem sistemas de graus extremamente complexos, vários rituais de iniciação, que conferem um poder, embora ilusório, mas não conferem autoridade alguma, pois o conhecimento que deveria advir do estudo e prática daqueles graus é extremamente superficial. E, mais triste ainda, muitos são os que adentram nessas escolas e ficam contentes exatamente por obterem esse falso poder, esvaído da autoridade real que deveríamos buscar. A intenção desses é apenas galgar graus, mesmo sem aprender nenhuma lição vinculada a eles. O próprio Martinismo pode ser vivenciado dessa maneira por alguns e, portanto, tal discussão é extremamente necessária em nosso meio.

O pré-requisito para que se haja uma autoridade natural é a ausência de superficialidade. Aquele ou aquela que não possui profundidade em seus estudos e práticas esotéricas1 jamais irá possuir autoridade alguma. Aqui vale uma importante observação – muitos foram os santos2 que nunca obtiveram iniciação em escola iniciática alguma e que possuíam essa autoridade natural, pois possuíam profundidade na Mística, na Gnose a na Magia Sagrada. Sendo assim, as escolas iniciáticas não conferem autoridade a ninguém, somente nós mesmos por meio de nossos próprios esforços e sinceridade interior poderemos fazer brotar em nós essa autoridade, que é concedida não pelo ego ou para seu benefício, mas pela espiritualidade para a execução do serviço impessoal.

A busca pelo poder vai em sentido oposto ao do exercício da autoridade, pois o poder nunca aprofunda nada. Frustrados por nunca conseguirem autoridade alguma, muitos partem para a busca pelo poder (e isto quando já não objetivavam isso desde o princípio de sua jornada). Aqui cabe uma reflexão para cada um de nós – temos essa autoridade natural? Se não, é porque falta em nós tal profundidade. E se ao percebermos que por não termos conquistado essa autoridade natural nós estamos buscando o poder, nós estamos sendo corrompidos, estamos trabalhando para a contra-iniciação.

Vários são aqueles que perdem boas horas do seu dia, muitas vezes atrapalhando outros âmbitos da sua própria vida como o profissional, em grupos de Whatsapp, Telegram, Facebook, no Instagram, no Twitter e em tantas outras redes sociais, bem como blogs e sites, falando de ordens iniciáticas, criticando a ordem do vizinho, discutindo peculiaridades das vidas de outros iniciados ou mesmo dos Mestres do Passado, debatendo temas iniciáticos sem profundidade alguma3, apenas para querer provar para si mesmo e para os outros, sem sucesso, que sabe alguma coisa em profundidade. Infelizmente a vaidade impera nesse meio e uma dúvida sincera que alguém possa ter e buscar sanar nesses meios torna-se palco para o ego daqueles a quem a pergunta é dirigida, pois não basta mostrar que se sabe, mas que se sabe mais que os demais. Em algumas ocasiões, quando há algum tipo de contrariedade, como quando alguém que desnuda o véu de boas intenções e sabedoria reinante nesses ambientes, aqueles com posição de administrador acabam exercendo seu poder para remover a perigosa ameaça de que alguém possa expor o que realmente ocorre ali. Ora, se a autoridade nesses meios é ilusória é porque falta profundidade e quem não se dedica aos estudos e práticas esotéricas do caminho iniciático que percorre, preferindo dedicar boa parte do seu tempo à ilusão das discussões vazias e infrutíferas em detrimento da dedicação ao currículo teórico e prático da tradição na qual se encontra, jamais terá algum sucesso real na Senda.

Também vemos um movimento de criação de inúmeras escolas iniciáticas que não apresentam diferenças substanciais em relação às que já estão firmadas, que justificariam a sua formação. Há quem busque obsessivamente por linhagens e ordens apenas para poder ter um grupo que possa dizer que é seu, exercer poder naquele grupo, ter alguma espécie de reconhecimento por alguns e, com isso, satisfazer a sua própria vaidade. Por conta disso, aparecem periodicamente as mais diversas Ordens novas, sem compromisso algum com a Tradição, apenas comprometendo-se a inflar o ego de seus fundadores, revelado por meio da existência efêmera ou da própria cisão de tais grupos por outros com os mesmíssimos objetivos contra-iniciáticos.

Observamos também uma excessiva exposição pessoal das atividades desse tipo de agrupamento por meio de seus dirigentes. Os líderes precisam atrelar o seu nome pessoal e a sua imagem a tudo aquilo que fazem nesse campo, ao contrário dos dirigentes de escolas tradicionais, que trabalham no silêncio, no anonimato e na impessoalidade, não fazendo nenhum tipo de propaganda de si mesmos. Como nos disse o nosso Venerado Mestre Louis-Claude de Saint-Martin: “permaneceremos desconhecidos para o mundo para que as nossas obras sejam duradouras e perenes”.

O fenômeno da gula espiritual é muito evidente também nos que buscam poder. Iniciam-se nas mais diversas ordens, apenas para obter os mais diversos certificados de iniciação, ao mesmo tempo que não buscam ter profundidade alguma nos assuntos e práticas dispostos pelas tradições nas quais galgaram graus. Isso sem contar que muitas vezes expõem os próprios certificados nas redes sociais apenas para mostrar que possuem algum tipo de poder temporal, quando não possuem nenhum.

Neste ponto vale lembrar do que nos falou o Mestre Papus: “O Martinismo é, acima de tudo, uma alavanca de desenvolvimento individual e um esforço no sentido da penetração da ciência viva. Como tal, procura dar ao homem de desejo a sensação de sua humildade e da mesma vitalidade que ele pode retirar deste entendimento. Nós não somos um novo rito maçônico, não damos aos homens da torrente o gosto por fitas multicoloridas e títulos poderosos; o homem que pensa e que aspira compreender as forças ativas não possui a necessidade desses chocalhos”. O martinista, bem como todo aquele que adentra uma escola iniciática, deve buscar penetrar a ciência viva, aprofundar-se nela e, para tanto, deve servir como uma alavanca de desenvolvimento individual, que passa pelo processo de autoconhecimento e auto-aperfeiçoamento, do estudo e da prática espiritual, não tendo espaço em seu âmago para a busca pelo poder temporal ilusoriamente adquirido por meio de iniciações, títulos, medalhas, fitas, etc.

A fonte da autoridade espiritual é Deus, não o ego. Desculpem-me pela repetição, mas a autoridade natural brota da profundidade da Mística, da Gnose e da Magia. Quando se chega a ela, encontramos o silêncio interior pelo qual o Divino pode se manifestar através de nós. Logo, essa autoridade vem do Alto e não do Eu, o que envolve renúncia4. Aquele que possui essa autoridade que vem do Alto renuncia a si mesmo em prol do serviço. Ele não age, opina ou trabalha por si mesmo, mas pelo Alto.

A nossa meta deve ser a Tradição. Não nos aprofundamos em nossos estudos e práticas meramente para nós, para nosso benefício, em nosso próprio nome. Trabalhamos na Senda da Iniciação pela Tradição, em nome da Tradição e para a Tradição. Isso nos lembra o nome iniciático recebido nas mais diversas escolas iniciáticas – ele esconde o nosso nome, evita o afloramento do próprio ego, dá anonimato. Não atrelamos o nosso nome civil nos textos e trabalhos em prol da Tradição para evitar que o ego se aposse de nós. É importante relembrarmos nesse ponto do profundo simbolismo da máscara, onde a personalidade desaparece. Em todas as situações contra-iniciáticas supracitadas, bem como em tantas outras, como quando um Irmão ou Irmã tenta puxar o tapete do outro, tomar o cargo do outro, disputas entre Ordens, dentre tantas outras coisas estranhas à Iniciação, nunca há anonimato, há ego. Enquanto o ego grita por cargos, títulos, graus, direção de Ordens, mostrar que sabe mais, não há espiritualidade.

Antes de pensarmos na Reintegração em um sentido cósmico precisamos pensar nela em um sentido individual e interno. Nós primeiro precisamos reintegrar o nosso ego no Eu maior. Para tanto, é muito importante o autoconhecimento – é necessário reconhecer as nossas sombras ao invés de ignorá-las ou floreá-las. No âmbito desta discussão, é importante frisar que estamos discutindo sobre a condição ideal para que a tão falada autoridade natural possa brotar em nós, mas precisamos também reconhecer a condição que nós nos encontramos. Todos nós temos ego, faz parte da natureza humana. O mais importante não é não ter ego, pois isso é quase impossível em nosso estado evolutivo, mas termos consciência disso tudo a fim de que nós possamos lidar com esse lado egóico da melhor forma possível.

Então, convido-os a uma reflexão, ao invés de apenas assimilar intelectualmente o que discutimos aqui. Leiam novamente este texto buscando identificar em si mesmos a existência dos pontos negativos à medida em que forem falados. Não é um trabalho fácil, é doloroso; essas ervas daninhas existem dentro de nós e identifica-las, aceitando que elas existem, é o primeiro passo para que possamos trabalhá-las e mesmo evitar problemas futuros envolvendo-as. Iniciação não enverniza ego de ninguém, revela-nos o nosso lado mais sombrio para que possa ser trabalhado através da luz da consciência interior e, para tanto, é preciso que sempre se dê importância à introspecção, ao trabalho de identificar, aceitar, abraçar e buscar transmutar as sombras que jazem nas profundezas de cada um de nós.

In L.V.X.,

Sar Orion

1 Para Valentim Tomberg, em sua obra “Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô, deve-se possuir profundidade na Mística, na Gnose e na Magia Sagrada para que a autoridade natural possa ser conferida do Altíssimo.

2 Quando refiro-me a santos não falo apenas dos católicos, mas dos santos de todas as religiões do mundo.

3 Muitas vezes apenas falando aquilo que pesquisou rapidamente naquele momento no Google ou na Wikipédia…

4 E, vale ressaltar, também envolve obrigações, sofrimentos e sacrifícios. A coroa de louros do que possui autoridade natural é a coroa de espinhos. O poder ilusório envolve a satisfação do próprio ego, sendo muito mais tentador que o caminho doloroso da renúncia e do serviço.


Comentários

Uma resposta para “A Autoridade Natural e a Ilusão do Poder”

  1. B.A Nascimento

    Ótima reflexão, acredito ser um exercício que sempre temos que revisitar, mesmo sendo doloroso.

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