Dados Históricos sobre a Igreja Joanita – Parte 2

Se ainda não leu, veja as partes anteriores para melhor se situar neste texto.

Parte 0: Palaprat

Parte 1: Igrejas Vétero-Católicas e Bispo Matthew

Hoje falaremos sobre a doutrina dos Episcopus Vagans, os Bispos Vagantes, e também sobre o Bispo Wedgwood.

Episcopus Vagans, Bispos Vagantes

Antes de prosseguirmos a nossa história, citamos algumas vezes, no decorrer deste trabalho, a expressão episcopus vagans, conforme puderam observar, a existência desses Bispos vagantes foi fundamental para o ingresso de uma sucessão apostólica no seio de ordens esotéricos ou mesmo para a existência de Igrejas que possuam um olhar mais iniciático/esotérico aliado ao olhar ortodoxo. É nisso que iremos nos deter agora.

O ofício de Bispo é tão antigo quanto o próprio Cristianismo, sendo mais antigo que o de sacerdote, diácono ou outras ordens da Igreja. Os próprios apóstolos designaram e ungiram Bispos como seus sucessores válidos. Esses homens receberam a autoridade de seus sucessores por meio da imposição de mãos para exercer a plenitude do poder espiritual concedido por Jesus aos seus apóstolos, de modo que delegavam funções especiais como o ensino, o perdão dos pecados, a cura e o aconselhamento.

Assim como os apóstolos, os seus sucessores, os Bispos, poderiam trabalhar de duas maneiras. Alguns estavam permanentemente ligados a uma cidade ou área geográfica específica, cuidando dos trabalhos espirituais de uma comunidade cristã. Outros, inspirados pelo dever de espalhar a mensagem de sua fé a todos os povos e nações, viajaram a terras distantes, vagando para longe do berço do Cristianismo e penetrando em países tão remotos como a Índia. Os apóstolos São Tomé, São Bartolomeu e Santo André trabalharam dessa segunda forma e, portanto, podem ser considerados os primeiros Bispos viajantes ou “errantes”.

Como sabemos, os primeiros séculos do Cristianismo são marcados por uma forte orientação pluralista de suas comunidades e de seus líderes. Reconhecendo uma devoção comum a Cristo e seus ensinamentos, eles diferiam amplamente em doutrina e prática. Com Constantino declarando o Cristianismo como a religião oficial de Roma, a “Ortodoxia” foi declarada obrigatória para todos. Quem não se conformou foi forçado a deixar a comunidade (e frequentemente até mesmo a sua residência). Tornaram-se andarilhos. Gnósticos, nestorianos, monofisistas e outros líderes de movimentos cristãos divergentes da Ortodoxia imposta tornaram-se Bispos errantes. Aqueles que se conformavam com as ideias do Imperador e do Bispo de Roma poderiam permanecer no cargo e, inclusive, gozar do apoio do Estado. No entanto, os novos Bispos errantes não deixaram de ter seguidores, pois as suas comunidades continuaram a existir e trabalhar, reunindo-se onde quer que fossem, levando muitas vezes as autoridades ortodoxas a perseguirem-nos. O resto da história já se sabe e, infelizmente, é bem triste.

Santo Agostinho

Ao contrário do que se pode pensar em um primeiro momento, ortodoxia e validade da sucessão apostólica não são coisas idênticas. A transmissão da autoridade apostólica existia fora da corrente principal das principais Igrejas, mas, embora muitas delas fossem consideradas heréticas, a validade das suas ordens apostólicas foi reconhecida por seus críticos. Devido a uma tradição antiga, articulada, mas não inventada, por Santo Agostinho, conhecida como doutrina agostiniana das ordens, mantida até hoje, os Bispos podem ser hereges, mas, tendo as mesmas intenções tradicionais, a sua sucessão apostólica ainda assim é considerada válida, da mesma forma que os sacramentos por eles administrados. Isto é válido também para os Bispos errantes existentes hoje – ainda que as suas congregações não sejam vinculadas a uma denominação “ortodoxa maior”, como a Igreja Católica Apostólica Romana ou uma Igreja Ortodoxa, e mesmo que possam ser consideradas heréticas, a sucessão apostólica é válida, conforme a doutrina agostiniana aqui analisada, novamente, desde que continuem as intenções tradicionais. Um Bispo, inclusive, pode excomungar a um outro de sua jurisdição, mas tal excomunhão não invalida as suas Ordens Sagradas. Uma vez consagrado, se é consagrado para sempre na Ordem de Melquisedeque. Uma vez Bispo, sempre Bispo, independentemente da denominação.

Bispo Wedgwood

Voltemos agora à história. Muitos membros do movimento teosófico eram profundamente religiosos em seus sentimentos, mas, devido aos ensinamentos da Sociedade Teosófica, sentiam-se desconfortáveis para participar de qualquer uma das Igrejas ortodoxas contemporâneas. O trabalho do Arcebispo Matthew poderia suprir essa necessidade, já que ele, num primeiro momento, parecia não se importar com as ideias da Teosofia de Blavatsky.

Bispo Wedgwood

Então, muitos membros da Sociedade Teosófica ingressaram na igreja do Arcebispo Matthew. Dentre eles destaca-se um jovem, James Ingall Wedgwood, que havia sido discípulo do grande organista da catedral de York, Dr. Tertius Noble. Wedgwood era uma autoridade na construção de órgãos e publicou um dicionário sobre o tema que até hoje é famoso.

Em 1904, Wedgwood assistiu a uma palestra sobre Teosofia ministrada por Annie Besant em York. Tendo-a ouvido uma vez anteriormente em Nottingham, ele decidiu encerrar seu interesse pela Teosofia participando de uma segunda palestra. Três dias depois, ao contrário dos seus planos iniciais, ele ingressou na Sociedade Teosófica. Devido ao seu profundo interesse no pensamento teosófico, foi banido da Igreja de York, onde estava se preparando, como consequência. Ele então desistiu da ideia de ter uma carreira na Igreja e decidiu dedicar-se ao trabalho da Sociedade Teosófica. Foi secretário geral da Sociedade na Inglaterra e no País de Gales de 1911 a 1913, renunciando ao cargo apenas para ingressar na jurisdição britânica da obediência maçônica mista Le Droit Human. É válido ressaltar também que, junto de Annie Besant e Marie Russak, fundou, em 1912, a Ordem Mística do Templo da Rosacruz.

Em dado momento ele viu em um jornal uma carta do Arcebispo Matthew e logo se pôs em contato com ele. A resposta de Matthew o pegou de surpresa e reacendeu seu interesse pela Igreja e pela entrada nas ordens sagradas. Ambos trocam cartas por um tempo suficiente para Wedgwood explicar a sua afiliação à Sociedade Teosófica, mas Matthew não demonstra nenhuma preocupação com isso. Então, Wedgwood foi rebatizado e reconfirmado sob condição, recebeu as Ordens Menores e, mais tarde, em 22 de julho de 1913, em Londres, foi ordenado sacerdote pelas mãos do próprio Matthew. Nos próximos dois anos, vários outros teosofistas também são ordenados. Como já dissemos, ele não tinha nenhuma objeção quanto a isso, embora possamos acreditar que ele sonhava em converter a própria líder do movimento teosófico para o seu movimento.

Quando, em mais uma das reviravoltas na vida do Arcebispo Matthew, ele decidiu se aposentar do movimento Vétero-Católico (ou Velho-Católico), foram feitas eleições. O Cônego Wedgwood (como então se designava) estava no exterior, engajado no trabalho missionário, e o sacerdote eleito foi F. W. Willoughby. Em um primeiro momento, Willoughby estaria pensando em retomar também ao movimento católico, assim como o seu antigo Arcebispo, mas ele se sentiu moralmente obrigado a não deixar seus companheiros do mesmo movimento sem sucessão. Afinal, dificilmente os teosofistas dessa Igreja continuariam as suas atividades religiosas nas denominações ortodoxas. Sendo assim, em 1915, Willoughby consagra os Reverendos Robert King e Rupert Gauntlett como Bispos. Em 13 de fevereiro de 1916, quanto Wedgwood retorna de uma visita à Austrália, é consagrado Bispo da Igreja Vétero-Católica da Inglaterra pelo Bispo Willoughby[1]Sabendo das polêmicas que Willoughby estava envolvido, Wedgwood procurou outros Bispos para receber essa consagração e, sem sucesso, recebeu-a do próprio. De todo o modo, lembremos que, … Continue reading e assistido pelos Bispos King e Gauntlett.

Com os velho-católicos continuando a desaprovar a criação de Matthew na Grã-Bretanha, Wedgwood começa a organizar um trabalho próprio que denomina Igreja Católica Liberal, da qual ele se tornou o primeiro Bispo presidente. Ao mesmo tempo, manteve relações com o movimento teosófico, de forma que muitos dos padres e bispos de Wedgwood eram simultaneamente teosofistas.

Voltando um pouco, em 1915, em uma visita à Austrália decorrente de seus trabalhos maçônicos, conhece Charles Webster Leadbeater. Ele iniciou Leadbeater na Maçonaria e falou sobre sua ordenação ao sacerdócio na Igreja Velho-Católica. Nas suas palavras: “Conversei com ele sobre minha ordenação e ele veio a várias celebrações da Eucaristia sozinho. Ele ficou muito impressionado com o poder do bem que tal ordenação concedia e com o esplêndido escopo que a celebração oferecia para espalhar a bênção espiritual no mundo”.

Mais tarde, em 1916, após ser consagrado Bispo, viajando novamente para a Austrália, Wedgwood consagra Leadbeater como Bispo em Sidney, em 22 de julho de 1916. Leadbeater acabou por suceder Wedgwood como Bispo Presidente da Igreja Católica Liberal, da qual falaremos adiante. Daquele momento em diante, Wedgwood viajou pelo mundo como Bispo missionário, criando o Rito Liberal (uma forma de liturgia cristã) em cooperação com Leadbeater, estabelecendo missões da Igreja e publicando uma série de obras sobre Teologia e Liturgia.

Com o tempo, envolveu-se em algumas polêmicas e, infelizmente, após contrair sífilis terciária, passou períodos intercalando lucidez e demência. Por conta disso, com o passar dos anos, ficou cada vez mais impedido de participar de atividades públicas por conta de seu comportamento imprevisível. Em 13 de março de 1951, em Farnham, Surrey, após uma queda, quebrando várias costelas e atingindo um pulmão, Wedgwood veio a óbito. Sua morte trouxe elogios de seus seguidores mais dedicados, que contemplaram o trabalho de humildade e de expiação que Wedgwood assumiu pelos portadores da sucessão apostólica que ele trouxe à Igreja Católica Liberal.

Abrindo as portas aos teosofistas para ingressarem na Igreja Vétero-Católica, fez com que a missão com pouca adesão do Bispo Matthew começasse a ter mais membros, estabeleceu as bases para a fundação da Igreja Católica Liberal, viajou o mundo inteiro difundindo essa nova denominação, bem como compilou a liturgia que seria utilizada nos trabalhos. Essa é, em linhas gerais, a grande contribuição por ele legada.

Referências

Referências
1 Sabendo das polêmicas que Willoughby estava envolvido, Wedgwood procurou outros Bispos para receber essa consagração e, sem sucesso, recebeu-a do próprio. De todo o modo, lembremos que, independentemente disso, por graça divina, a consagração é válida como qualquer outra.

Comentários

Uma resposta para “Dados Históricos sobre a Igreja Joanita – Parte 2”

  1. Gratidão!!

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