Estudos Tradicionais – Catecismos 2

Estudos Tradicionais

2ª Preleção

Tema: Religião e tradição

Vislumbrava René Guénon uma crise de natureza religiosa no mundo moderno?

Sim, e ele a denunciou, mais ou menos extensamente, em todas as suas obras.

Quais são as críticas de René Guénon a esse respeito?

A crise da Religião levou a um afastamento da Tradição, fenômeno que ainda não chegou a um fim, pois o processo de decadência da civilização moderna nessa seara só se faz aprofundar e espalhar a cada nova geração. Esqueceram-se as verdades eternas apontadas por Platão como sendo o Verdadeiro (Verum), o Bom (Bonum) e o Belo (Pulchrum). Os seres humanos não são mais ensinados e orientados sobre em quê acreditar, mas são incentivados a pensar por si mesmos.

Mas não é algo altamente desejável o livre pensamento? Aliás, não é esse um dos pilares sobre os quais se alicerça toda a maçonaria?

Sim, certamente é, e a Maçonaria tem sido uma defensora ardorosa do livre pensamento desde o seu nascedouro. Note-se bem: a crítica, aqui, não diz respeito à liberdade de pensamento em si, mas à carência de subsídios ao correto livre pensar. À exceção de um gênio, alguém que jamais estudou filosofia não pode pensar filosoficamente de um modo correto; quem nunca estudou história, não saberá bem interpretar livremente os eventos históricos; o ignorante em sociologia será incapaz de dar curso ao livre pensamento quanto ao fenômeno social. De igual maneira, como bem ilustram estes exemplos, não poderá pensar livre e corretamente sobre Religião o indivíduo carente de qualquer conhecimento e orientação nesse campo específico do saber humano. A maioria dos seres humanos não se encontra capacitada a “pensar por si mesma” em matéria de Religião porque não recebeu ensinamentos básicos, elementares, em matéria religiosa. Afinal, o século XX, até a sua primeira metade, talvez tenha sido o derradeiro momento em que houve alguma preocupação em se ensinar Religião, em se aprender Religião, em se estudar Religião, para, então, eventualmente, pensar-se sobre a Religião.

Bastaria, pois, que a humanidade atual passasse a estudar a Religião, num esforço de autodidatismo, para reverter essa situação de profunda ignorância em matéria teológica?

Sim e não. O estudo nunca é demasiado e dele sempre se poderá colher bons frutos. Contudo, em matéria de Religião, como de resto em todas as áreas do conhecimento humano, não se pode prescindir da orientação dos especialistas. Assim como ao agricultor compete a agricultura; ao artesão, a sua arte; ao médico, a medicina e ao professor, o ensino, a orientação em matéria de Religião compete aos seus especialistas, vale dizer, aos sacerdotes, teólogos, monges, rabinos, imãs etc. Não se está aqui, obviamente, defendendo uma postura religiosa dogmática e míope, mas o recurso ao especialista em matéria de Religião como orientador de estudos e, sobretudo, como introdutor ao “pensamento religioso”. Se cada área do saber humano conta com um modo próprio de pensar – há um pensamento filosófico, um pensamento científico, um pensamento pedagógico e um pensamento jurídico (e os exemplos são praticamente infindáveis), há que se receber algum treinamento, ainda que elementar, no “pensamento religioso”.

O que entende René Guénon por Religião?

René Guénon vê toda e qualquer Religião alicerçada no tripé dogma, culto e moralidade. Interna e mais profundamente, subjacente a esse tripé, há a espiritualidade ou a mística, que não interessará a todos, tampouco será por todos compreendida.

A Religião, mesmo sob seu aspecto etimológico, “liga” o ser humano a Deus, a Fonte incognoscível e numênica de todo fenômeno. Essa ligação se faz de duas maneiras: (I) explicando a natureza e o sentido da criação universal (teodicéia) e (II) esclarecendo a função e o propósito do ser humano na criação, bem como o modo dele se libertar das suas limitações (soteriologia). Ou seja, doutrina e método (práxis); teoria e prática; dogma e sacramento; unidade e união. A doutrina engaja a mente (ou o intelecto, no sentido tradicional desse termo) e a prática, a vontade. A prática, por sua vez, subdivide-se em culto e moralidade. O culto diz respeito a ritos privados ou públicos, a fim de assimilar a vontade do ser humano à Fonte. A moralidade diz respeito “àquilo que se deve fazer”. Em sendo impossível apresentar elementos morais únicos às religiões, talvez se possa dizer que a ética subjacente a todas elas resuma-se na Regra de Ouro: “não fazer ao outro o que não se quer que o outro faça a si”.

Mas o que define uma “verdadeira” religião de uma religião “falsa”?

Em termos estritos, não existem religiões falsas, mas tão somente arremedos, pastiches, caricaturas de Religião. A Religião não é inventada pelo homem, mas revelada por Deus, isto é, pela Fonte. Essa revelação é vertical, vem de cima para baixo, não sendo horizontal, isto é, fabricada pelos seres humanos (esta é uma distinção esclarecida por Guénon em O simbolismo da cruz). A revelação divina é essencial e indispensável ao fenômeno religioso. Sem ela, na melhor das hipóteses, haverá um sistema filosófico.

Sob esse viés, qual seria a relação entre Religião e Tradição?

Toda. Porque é revelada, a Religião é transmitida sem que a sua essência seja modificada, muito embora seus aspectos externos inevitavelmente venham a ser mais e mais elaborados no transcurso das gerações e, não raramente, distorcidos. Assim, ainda que os elementos exteriores de uma determinada religião venham a sofrer modificações mais ou menos desejáveis, o seu núcleo, o seu coração, a sua essência mesma sempre estará preservada. De todo modo, justamente para evitar modificações que venham a distorcer demasiadamente os seus aspectos externos é que toda religião não pode dispensar a ortodoxia, isto é, a busca pela preservação da sua pureza doutrinária.

Seria possível resumir à sua expressão mais simples essa visão tradicionalista do fenômeno religioso?

Decerto. São indissociáveis da Religião os seus elementos essenciais e formais, sendo os primeiros o dogma, o culto e amoralidade, e os segundos, vale dizer, o “recipiente” ou a “moldura” da Religião, a revelação, a tradição e a ortodoxia.


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