Caro Estudante,

Você me diz que gostaria muito de ser iniciado na Ordem dos Élus Coëns e pediu-me que essa porta lhe fosse aberta quando chegasse o momento adequado. E eu me pus a pensar…
Será mesmo uma questão de se aguardar o momento propício ou de se verificar a existência de uma vocação especial – e rara?
Atente para uma confusão que muitos já fizeram, incorrendo em equívoco: a Ordem de Martinez de Pasqually não é um rito maçônico na acepção comum do termo. Se é verdade que Pasqually usou o ainda nascente Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA) para emoldurar seus ritos e doutrinas próprios, as similaridades com esse rito maçônico são muito superficiais. Assim, caso seja essa a sua ideia, você faria bem em excluir a Ordem dos Élus Coëns da chamada “dança dos aventais” dos altos graus dos ritos maçônicos mais disseminados entre nós.
O nome original da ordem – l’ordre des chevaliers maçons Élus Coëns de l’univers – já dá uma boa pista da vocação que se espera dos seus membros: sacerdotes ou élus. E já aqui se apresenta a primeira pergunta que você deve fazer a si mesmo: tenho eu a vocação sacerdotal para auxiliar a restabelecer o culto primitivo devido por Adão antes da Queda? Para celebrar ritos pré-noaquitas destinados a realizar uma obra de expiação necessária a uma humanidade decaída? Sobretudo, eu adiro a essas ideias, que compõem a assim chamada Doutrina da Reintegração dos Seres?

É importante, ademais, que você também não confunda a teurgia martinezista com a teurgia neoplatônica, cujos expoentes mais conhecidos são Jâmblico e Proclo. Enquanto a teurgia grega tem por objetivo entrar em contato com o divino, a fim de ter a experiência sensível do transcendente e a derradeira purificação e divinização da alma humana, fazendo uso, para tanto, de invocações, preces, fumigações, círculos e tochas, a teurgia praticada e ensinada por Martinez de Pasqually volta-se a pôr o homem em relação estreita com a divindade por meio dos seus intermediários – anjos ou espíritos celestes e supracelestes – e a exorcizar espíritos tenebrosos, incansáveis no seu intento de perder a humanidade, separando-a em definitivo de Deus[1]Robert Amadou lista a natureza dessas operações, ainda que não houvesse exatamente um ritual específico para cada uma delas: culto de expiação (purificação); culto para pedir a graça … Continue reading. Em suma, o objetivo final dos adeptos da Ordem é, mediante o auxílio dos seres angélicos e, sobretudo, do anjo guardião de cada qual (le bon compagnon) permitir a reintegração do ser humano caído (isto é, a reconstituição de Adão, o Homem Arquetípico, fragmentado após a Queda) nos seus poderes e estado originais[2]Hoje sabemos que parte das fontes de Pasqually foram as obras Horologium auxiliaris tutelaris Angeli, ou L’Ange conducteur de Jacques Coret, o Petit Livre du chrétien dans la pratique du service … Continue reading.
Assim, meu caro estudante, eu o aconselho a se deter agora, interrompendo por alguns instantes a leitura desta carta, para se indagar se haveria tempo disponível, na sua vida pessoal, para a realização de cerimônias dessa natureza, algumas delas a durar algumas horas.

Antes de você se apressar em responder-me afirmativamente, verifique se você disporia de espaço para tais práticas teúrgicas, pois Pasqually ensinava que era preciso dispor de um cômodo destinado apenas para esse fim, e um cômodo sem janelas…
E antes que eu me esqueça, eu lhe indago: você é católico? Essa pergunta é mesmo crucial, pois embora Jean Bricaud e Georges Bogé de Lagrèze tenha desconsiderado essa exigência em seu revivescimento da Ordem (por alguns chamada de neo-Coëns), Pasqually exigia que seus adeptos fossem católicos romanos ou se convertessem à fé católica, tendo cada qual de jurar “manter-se fiel à santa religião católica, apostólica e romana”.
Se você tiver tempo e lugar para as práticas teúrgicas, bem como professar a fé católica, é meu dever informá-lo a respeito da severa disciplina a que você se submeterá: jejuns, vigílias e abstinência sexual frequentes, participação em missas e uma dieta rigorosa, semelhante àquela adotada pelos judeus. Diariamente, você recitará o Salmo 62 pela manhã, o Salmo 102 ao meio-dia, o Salmo 142 às seis horas da tarde e o Salmo 50 à meia-noite. Na lua nova, você também recitará os sete Salmos Penitenciais (6, 32, 37, 50, 101, 129 e 142[3]Sl 6 (Domine, ne in furore tuo arguas me…); Sl 32 (Beati quorum remissae sunt iniquitates…); Sl 37 (Domine, ne in furore tuo arguas me…); Sl 50 (Miserere mei, Deus…); Sl 101 … Continue reading), sendo que o Miserere (Sl50) você recitará voltado para o leste e o De profundis (Sl 130), prostrado ao solo, com a face voltada para baixo. No mais, você terá de se habituar a rezar o Pai Nosso, a Ave Maria e o Anjo do Senhor.

Ainda assim, você entende que essa via é para você? Se a sua resposta for afirmativa, eu espero que seja realmente sincera. Se não o for, você decerto encontrará muitos que lhe dirão que tais exigências e disciplinas estão superadas, fazendo-se desnecessárias… Bem, se você quiser descobrir por si mesmo se isso é verdade, arriscando-se por atalhos, caso tenha sorte, suas operações teúrgicas não atingirão resultado algum. O mais comum, contudo, é que você não seja tão afortunado… Nesse caso, você há de poder aquilatar o preço a se pagar pela aproximação leviana a potências que nos são desconhecidas.
Qualquer que venha a ser a sua decisão, meu caro estudante, eu espero que minha carta lhe tenha permitido fazer importantes reflexões. Caso queira se aprofundar nas informações que lhe trago, recomendo que consulte os textos e obras listados abaixo, que lhe encaminho juntamente com esta missiva.
Ante as Luminárias,
Sâr Apollonius R+
Apêndice bibliográfico:
AMADOU, Robert. La Magie des élus coëns. Angéliques: recueil d’hiéroglyphes, table alphabétique des 2 400 noms, tableaux figuratifs pour les opérations, Paris: Cariscript, 1984.
AMADOU, Robert. Les Vivant e les Dieux in France Culture, 4 de março de 2000.
CLAIREMBAULT, Dominique. La prière dans le martinisme, 2016 – https://www.philosophe-inconnu.com/
CORREA, Ivan. Teodiceia psíquica. Editora Daimon, 2021.
PAPE, Gilles Le. Les écritures magiques. Aux sources du registre des 2400 noms d’anges et d’archanges de Martines de Pasqually, Milão: Arché, 2006.
RAVIGNAT, Mathieu Gérard. The Original High Degrees and Theurgical System of the Masonic Elect Cohen Knights of the Universe, edição independente, 2019.
REBISSE, Christian. La prière dans le martinisme in Pantacle, Le Tremblay, 1994.
VIVENZA, Jean-Marc. El espíritu del Saint-Martinismo. Madri: Dilema, 2019.
Referências
↑1 | Robert Amadou lista a natureza dessas operações, ainda que não houvesse exatamente um ritual específico para cada uma delas: culto de expiação (purificação); culto para pedir a graça de Deus; culto contra os demônios; culto contra a prevaricação original e para a conservação dos fragmentos que ainda possuímos da nossa natureza original; culto contra a guerra; culto contra os inimigos das leis divinas; culto para a descida do Espírito Santo; culto para fortalecer a fé, a perseverança e a virtude espiritual; culto para se unir ao Anjo da Guarda. |
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↑2 | Hoje sabemos que parte das fontes de Pasqually foram as obras Horologium auxiliaris tutelaris Angeli, ou L’Ange conducteur de Jacques Coret, o Petit Livre du chrétien dans la pratique du service de Dieu et de l’Eglise e o Heptameron de Pietro de Abano. |
↑3 | Sl 6 (Domine, ne in furore tuo arguas me…); Sl 32 (Beati quorum remissae sunt iniquitates…); Sl 37 (Domine, ne in furore tuo arguas me…); Sl 50 (Miserere mei, Deus…); Sl 101 (Domine, exaudi orationem meam…); Sl 129 (De profundis clamavi…); Sl 142 (Domine, exaudi orationem meam, auribus percipe…). |
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