Martinismo & Rosa+Cruz

Muitas vezes, a relação entre a Ordem Martinista e a Rosa+Cruz é pressentida, intuída, mas não muito bem compreendida. Muitos irmãos me questionam a respeito da Ordem Martinista da Rosa+Cruz Dourada (Martinism | Martinist Order of the Golden and Rosy+Cross (grc-martinist.org)), organização irmã da Irmandade dos Filósofos Desconhecidos. O casamento do Martinismo com a Rosa+Cruz chama-lhes a atenção e aguça a curiosidade. Neste post, falarei a respeito de alguns aspectos históricos do íntimo relacionamento das Tradições Martinista, já conforme sua manifestação enquanto Ordem Martinista, e Rosacruciana. Em uma publicação futura, introduzirei o Sistema R+C I.N.R.I. conforme o concebemos e praticamos no presente ciclo de atividade. Gostaria de introduzir uma compreensão acerca da importância desse aspecto da obra velada pela Tradição Esotérica Ocidental.

Ordem Martinista da Rosa+Cruz Dourada

Quando Papus fundou a Ordem Martinista, ele a planejou como uma escola de cavalaria moral, uma cavalaria de altruísmo, dedicada ao esforço de desenvolver, pelo encontro entre ciência e religião, a espiritualidade de seus membros através do estudo do Mundo Invisível e das suas Leis. A proposta papusiana para a Ordem Martinista foi a de que ela fomentasse a união íntima dos sistemas de Saint-Martin e Willermoz: os Iniciadores Livres, criando discretamente outros Iniciadores e desenvolvendo a Ordem pela ação individual, caracterizavam o sistema de Saint-Martin; os grupos de Iniciados e Iniciadores, regidos por um centro único e constituídos hierarquicamente, caracterizavam o Willermozismo. Seguindo esse espírito, o primeiro Supremo Conselho foi constituído com o intuito de manter os Iniciadores Livres assessorados por Delegados e Soberanos Inspetores (membros do Supremo Conselho). Nosso post anterior a respeito da concepção de Papus sobre a Ordem Martinista pode ser consultado para um pertinente aprofundamento sobre este tópico.

Ainda conforme o pensamento de Papus, uma Sociedade de Iluminados, tal como a dos Irmãos Iluminados da Rosa+Cruz, deve ligar-se ao Invisível por um ou mais de seus chefes. Seu princípio de existência tem origem em um plano supra-humano, ou seja, toda a sua organização administrativa se faz de cima para baixo. Tal como originalmente planejado para a Ordem Martinista, seria através do Supremo Conselho que o Martinismo deveria se ligar ao Iluminismo Cristão. Vejamos, então, como Papus atuou, ainda antes do estabelecimento do primeiro Supremo Conselho em 1888, a fim de estabelecer tal ligação:

Irmandade Hermética da Luz (H.B.L.)

Em torno de 1887, Barlet era o representante, para a França, da Irmandade Hermética da Luz (H.B.L.), um grupo que se opunha ao orientalismo da Sociedade Teosófica e que foi tornado público por Max Theon na década de 1870. Papus, Sédir, Chaboseau e Marc Haven se associaram à H.B.L., que, até o momento em que foi substituída pela Ordem Cabalística da Rosa+Cruz (O.K.R.C.), serviu como um tipo de círculo mais interno do próprio Martinismo. Pode-se considerar que essa foi a primeira tentativa para o estabelecimento do vínculo entre a Ordem Martinista e a tradição dos Iluminados, embora ainda não especificamente com o Iluminismo Cristão.

O lugar que fora ocupado pela H.B.L. no seio do Martinismo, entretanto, rapidamente foi preenchido pela O.K.R.C., fundada por Stanislas de Guaita. Em termos cronológicos, temos que, em 1884, Guaita conhece Joséphin Péladan e Adrian Péladan. Adrian frequentava a R+C de Toulouse, nesse momento dirigida por Firmin Boissin. Em 1887, Sain-Yves d’Alveidre apresenta Guaita a Papus. Em 1888, Guaita funda a O.K.R.C., constituindo um Supremo Conselho de 12 membros. Em 1890, optando por um viés mais estético e católico, Joséphin Peladan rompe com o grupo mais ocultista e funda sua própria Ordem (a Ordem Rosa+Cruz Católica, do Templo e do Graal) e, em 1897, Guaita morre.

Marquês de Guaita

A R+C de Toulouse, da qual a O.K.R.C., fundada por Guaita, é herdeira e tradicional depositária, era dirigida pelo Prior Firmin Boissin (1835 – 1893) e foi frequentada pelo Visconde Louis-Charles-Edouard de Lapasse (1792-1867), discípulo de Balbiani de Palermo, tendo sido este último um discípulo de Cagliostro. Em 1850, Lapasse funda a Ordem Rosa+Cruz do Templo e do Graal, continuada pelas atividades do Templo Rosacruz de Tolouse e, posteriormente, revivida por Péladan.

Também existe uma outra via tradicional que se diz ter chegado em Adrian Péladan. Conforme considerações de Chaboseau a respeito de arquivos de posse de Victor-Emile Michelet, Eliphas Levi, no período em que fez a operação de Appolonius e esteve em Londres (1873), encontrou-se com “A Fraternidade”. “A Fraternidade”, focada no estudo da pneumatologia, da magia e da cabala, possuía uma linhagem ininterrupta que a ligava a rosacruzes ingleses dos séculos XVI, XVII e XVIII. De Edward George Earl Bulwer-Lytton (1803-1873), Levi recebeu a linhagem esotérica em uma forma sacramental. Bulwer-Lytton era membro da SRIA e amigo próximo de Kenneth McKenzie. Durante sua estada na Alemanha, foi iniciado na Goldone Morgenrothe, citada por Freulein Sprengel, uma ordem maçônica frequentada pelos Irmãos Asiáticos (“Cavaleiros e Irmãos de São João Evangelista da Ásia na Europa”). As linhagens da Goldone Morgenrothe e da “Fraternidade”, através de Levi, foram transmitidas ao Abade Lacuria, iniciador de Adrian Péladan, que, enfim, iniciou seu irmão, Josephin Péladan, e Guaita.

Eliphas Levi

Algumas fontes alegam que, em um momento posterior (1897), Papus, Marc Haven e Sédir procuraram reformular a O.K.R.C. em um novo formato – a Fraternidade do Tesouro da Luz, Fraternitas Thesauri Lucis (F.T.L.) –, mas esse projeto, mais propriamente de Sedir do que do próprio Papus, foi definitivamente abandonado. Somente anos mais tarde, em 1914, Papus poderia ter cogitado inserir uma nova transmissão R+C interna à Ordem Martinista: a Rosa+Cruz do Oriente (R+CO), uma elevada expressão terrena do Iluminismo Cristão. Naquele momento, Papus fora iniciado por Georges Lagréze nessa tradição que havia sido tornada pública por Demetrius Sémelas (representante da Ordem Martinista no Egito). Entretanto, Papus falece em 1916 e tal inserção não pôde ocorrer por suas mãos.

R+C d’Orient

Uma vez que Papus compreendia que, via de regra, uma Sociedade de Iluminados liga-se ao Invisível por um ou mais de seus chefes, e tendo em vista que ele considerava os Irmãos Iluminados da R+C como um exemplo desse tipo de sociedade, por esta breve exposição torna-se claro que os planos originais para a Ordem Martinista previam que ela se vinculasse ao Iluminismo Cristão por meio do seu apadrinhamento por uma das mais tradicionais vertentes desta forma de Iluminismo: a Tradição Rosacruciana.

Martinismo & Rosa+Cruz

Para além da ligação interna da Ordem Martinista com o Iluminismo R+C, Papus também se preocupou com a formação de órgãos exteriores e de laços fraternais com fraternidades irmanadas – diferentes braços da Tradição Iluminista ou, em alguns casos, elas mesmas sendo caracterizadas como Sociedades de Iluminados. Dentre os órgãos exteriores formados por Papus, destaca-se a criação do G.I.D.E.E. (Grupo Independente de Estudos Esotéricos), hoje representado pelo G.I.D.E.P.O. (Grupo Independente de Estudos e Pesquisas Ocultos, um órgão exterior da IFD), e da publicação “L’Initiation”. Por sua vez, com relação às fraternidades irmanadas, Papus procurou estabelecer laços fraternais, muitas vezes pela proposição mútua de tratados de cooperação e de amizade, com diversos grupos tradicionais: União Idealista Universal, Ordem dos Iluminados da Alemanha, Babistas, O.T.O., Sociedades Chinesas, Sociedades Sufis, Sociedade Alquímica da França, Rito Antigo e Primitivo de Memphis & Misrain, Rito Escocês Retificado (negociações iniciadas por Semelas, delegado da O.M. para o Egito), etc. Nos tempos do Grão-Mestrado de Barlet, também houve uma tentativa de aproximação do rosacrucianismo francês, representado pela OKRC, com o inglês, representado pela Societas Rosacruciana in Anglia – SRIA. Dentre os diversos grupos irmanados à Ordem Martinista, um deles é merecedor de especial destaque pela vinculação íntima que foi formada: a Igreja Gnóstica da França ligou-se à Ordem Martinista pela promulgação de uma bula patriarcal e muitos membros do Supremo Conselho da Ordem Martinista também se tornaram membros do Grande Sínodo da Igreja. O leitor interessado em se aprofundar nos enlaces da Igreja Gnóstica com a Ordem Martinista se contentarão em saber que nosso irmão Sâr Orion disponibilizará, neste blog, uma ampla pesquisa a respeito da história da Igreja Gnóstica, concluída com a formação da Igreja Gnóstica da Luz Eterna ou Ecclesia Gnostica Aeternae Lucis – EGAL, profundamente irmanada com a Irmandade dos Filósofos Desconhecidos e com a Ordem Martinista da Rosa+Cruz Dourada.

Muito por conta dos esforços, do caráter inovador e da versatilidade de pensamento de Papus, a Ordem Martinista prosperou e se alastrou para todos os cantos do globo. Evidentemente, pelo acúmulo de seus próprios méritos, a Amada Ordem passou a atuar como um importante centro magnético, atraindo para dentro de si considerável quantidade de Iniciados e tornando-se digna de ser, ela mesma, considerada uma Sociedade de Iluminados. Desse modo, juntamente do alastramento da Ordem Martinista, verdadeiros centros de Iniciação foram constituídos por todo o mundo.

Pondera-se que, com a morte de Papus e o conhecido desmembramento da Ordem Martinista em diferentes ramos, uma grande multiplicidade de modos de pensar e estruturar o Martinismo emergiu. Pode-se considerar que alguns desses modos ou sistemas estão mais próximos dos planos e das ideias originais de Papus, e outros, mais distantes. De igual forma, alguns estão mais próximos do Iluminismo e do contato íntimo com o Invisível, enquanto outros se distanciam, cada vez mais, desta importante vinculação de caráter exclusivamente espiritual.

Ordem Cabalística da Rosa+Cruz

De todo modo, é patente que o propósito inicial da O.K.R.C. como um corpo interno de incentivo ao aprimoramento prático e investigativo da formação tradicional, bem como de fortificação do vínculo, por meio do Iluminismo R+C, entre a Ordem Martinista e o Iluminismo Cristão, ainda deve ser considerado como de inestimável valor. De fato, pelos mais diversos fatores, como o da substituição do Iluminismo R+C por tradições estrangeiras que originalmente ocupavam o lugar de fraternidades irmanadas ou amigas, uma grande lacuna vem sendo alimentada entre a Ordem Martinista e a Tradição Iluminista.


Comentários

3 respostas para “Martinismo & Rosa+Cruz”

  1. Arnaldo da Penha Rosa

    Muito bom Obrigado!

  2. Bruno Arangio

    Sendas de Verdade, que dissipam as trevas da minha ignorância!!

  3. Leopoldo Alves de Lima

    Sempre instrutivo e conciliador 🙂

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