(Esta publicação disponibiliza o décimo capítulo da segunda edição do livro Teodiceia Psíquica [Ivan Corrêa, Daemon Editora] – Teodiceia Psiquica – Daemon Editora)
“Vá cultivar na terra,
ela te produzirá apenas espinhos (…)
Depois da prevaricação, o menor 4 perdeu
a lembrança de seu nome espiritual.
Todos os espíritos menores 4 têm realmente um nome
que os distingue em suas virtudes e potências de ser,
em relação à sua obra temporal.” – Martines de Pasqually
A obra Teodiceia Psíquica foi planejada e desenvolvida como uma pesquisa acadêmica e, por conseguinte, observou um rigor metodológico próprio ao processamento simbólico-arquetípico da investigação psicológica junguiana. No momento em que seus capítulos foram escritos, preocupei-me em ilustrar e discutir a teoria junguiana da coexistência, na alma, dos princípios psíquicos do bem e do mal e, para tanto, me detive na apresentação de um recorte específico do conjunto mitológico-doutrinário martinezista presente no Tratado da Reintegração dos Seres (Pasqually, 2007). Considero que minha experiência com essa temática foi bastante profícua, proporcionando-me a possibilidade de dialogar com diferentes pesquisadores, colocando-me em contato com diferentes pessoas em ciclos de palestras que pude ministrar e levando-me, em seguida, a desenvolver uma dissertação de mestrado em Psicologia Clínica publicada, em 2020, sob o título Jung e a Sofia – imagens arquetípicas da Eterna Sabedoria (CORRÊA, 2020). Se, por um lado, em Teodiceia,pude investigar o elemento luciferino do quarto reprimido da Imago Dei junguiana, por outro, em Jung e a Sofia, foi-me possível deter-me mais aprofundadamente no tema do elemento feminino presente na mesma Imago. Dessa maneira, Teodiceia Psíquica e Jung e a Sabedoria são trabalhos que se complementam na investigação das representações simbólicas do Si-mesmo.
Desde 2014, ano de sua primeira edição (CORRÊA, 2014), o livro Teodiceia Psíquica também tem sido consistentemente empregado por estudantes martinistas interessados em conhecer o pensamento de Martines de Pasqually. Para esses leitores, sempre que me foi possível, recomendei que se debruçassem especialmente sobre os capítulos cinco e seis para uma compreensão histórica, cosmogônica e pneumatológica do pensamento de Pasqually, bem como se detivessem nos subcapítulos “perspectiva martinezista” do sétimo capítulo para se aproximarem da compreensão martinezista acerca dos importantíssimos modelos que coroam o coração do Tratado da Reintegração dos Seres. Ainda que essa leitura torne mais simples a compreensão da obra de Pasqually, o recorte adotado em minha pesquisa é insuficiente para adequadamente destacar aspectos fundamentais do mencionado conjunto mitológico-doutrinário. Aqui, me refiro especificamente aos elementos que permitem uma compreensão mais acurada da organização do Cosmos antes e depois da Queda dos primeiros espíritos e do Homem, bem como dos lugares ocupados pelo espírito menor 4 e pelos demais espíritos nesses diferentes momentos. A tradição martinezista costuma chamar esses elementos de “Quadro Universal”. Dentro de minha experimentação pessoal em distintos meandros martinistas, nos quais pude experimentar posições de liderança que me permitiram auxiliar inúmeros estudantes, bem como no seio da própria tradição Elus-Cohen, observei que os processos operativos-teúrgicos, conforme apresentados por Martines de Pasqually, não costumam ser inteiramente compreendidos. Uma vez que os ritos performam os mitos que os nutrem com expressão simbólica e os preenchem de sentido, entendo que isso se deva justamente à desinformação acerca do conjunto mitológico-doutrinário martinezista. Levando em consideração esse contexto, com este capítulo complementar que acrescento a esta segunda edição de Teodiceia Psíquica, gostaria de contribuir para a formação desses estudantes interessados em se aprofundarem no pensamento de Pasqually por meio de uma apresentação mais completa sobre Quadro Universal.
O modo como Pasqually propõe a natureza de Deus, a CAUSA PRIMEIRA, é um dos pontos mais característicos de sua doutrina. Para ele, ainda que uno, Deus possui uma ESSÊNCIA QUATERNÁRIA composta pelas primeiras classes de espíritos e compreende três modalidades de expressão. Essas modalidades são o pensamento, a vontade e a ação, que, conjuntamente, formam o próprio Verbo empregado na criação. Pasqually refere-se a Deus como fonte una inesgotável de seres que Ele emana segundo sua vontade, quando lhe apraz. Os números 4 e 3 são bastante significativos para essa compreensão, vez que foram aqueles dos quais o Eterno se serviu para operar, respectivamente, a emanação dos espíritos e, em outro momento, a criação material. O 3 também é associado por Pasqually ao mercúrio, ao sal e ao enxofre, que sustentam a criação das três regiões materiais terrestres que se contrapões com as quatro regiões espirituais celestes.
As informações do parágrafo anterior podem parecer extremamente herméticas e complexas. De fato, o pensamento de Pasqually não é simples e é por essa razão que se tornou comum para diversos autores fazerem uso de outras cosmovisões mais conhecidas para, lançando uso de analogias e comparações, encontrar sentido no pensamento martinezista. Considero essa tendência um erro. O sistema de Pasqually, ainda que possa recordar-nos de algumas características do sistema cabalístico, da mística gnóstica e da numerologia pitagórica, não guarda identidade perfeita com nenhum desses paradigmas. O que eu gostaria de sustentar neste capítulo-adendo é a perspectiva de que, para compreender Pasqually, por mais que isso seja bastante desafiador, devemos simplesmente nos ater a Pasqually. As informações do Tratado realmente formam um todo coerente e completo. A grande dificuldade está no modo pouco didático da apresentação da narrativa mitológica, sempre interpolada com informações doutrinárias. Uma vez que informações que são trazidas desde o início da obra são explicadas, por exemplo, somente no grande Discurso de Moisés, e que o próprio Discurso tão somente se torna compreensível para aqueles que leram atentamente as partes anteriores e posteriores, considero que apenas uma leitura do Tratado não é suficiente para compreender a cosmovisão martinezista. Dito de outra maneira, as partes do Tratato tornam-se inteligíveis tão somente a partir da compreensão do todo. Neste capítulo, procuro costurar ambas, a narrativa e a doutrina, de maneira coesa, com determinada organização sequencial, para facilitar o entendimento. Nele, é importante ressaltar, tomo como base apenas o próprio Tratado. Vejamos:
Os Seres Espirituais foram EMANADOS por Deus para sua própria glória, antes do TEMPO e mesmo do ESPAÇO. Isso aconteceu no seio da IMENSIDADE DIVINA e, nessa condição, os primeiros seres conseguiam ler o que se passava na Divindade e, por conseguinte, ainda que livres e distintos, sentiam e agiam unicamente pela vontade de Deus. Eles foram emanados para serem CAUSAS SEGUNDAS, sendo a agência da causa primeira exclusiva à Divindade. Por essa razão, Pasqually afirma que, ao emaná-los, Deus dotou-os de uma LEI (“peso” ou “virtude” que se expressa no “pensamento” unificado com o divino), um PRECEITO (“número” ou “faculdade” que se expressa na “vontade” unificada com o divino) e um COMANDO (“medida” ou “potência” que se expressa na “ação” unificada com o divino) que deveriam ser cumpridos.
É importante destacar que Pasqually compreendia que LEIS IMUTÁVEIS governam todo o universo e que todos os seres estão submetidos a essas leis. Dessa forma, sem a lei, ou seja, sem o princípio do ser espiritual, o próprio “ser” não existe, não existindo nem pensamento, nem vontade, nem ação. Os primeiros Seres Espirituais foram emanados em quatro classes distintas: Espíritos Superiores 10, Maiores 8, Inferiores 7 e Menores 3. A mencionada Quádrupla Essência de Deus coincide de maneira exata com essas quatro classes de espíritos emanados. Para Pasqually, uma vez que compreendia a equivalência do número com a lei que fundamenta a essência de cada ser, a atribuição numérica aos espíritos é muito importe.
Uma vez dada a compreensão de que os números referem-se à natureza espiritual imutável e às leis da natureza espiritual, Pasqually propunha que nenhum homem poderia ser sábio sem o conhecimento dos números. Tendo em vista que os números ímpares não podem ser divididos, seu entendimento era o de que eles são mais poderosos do que os pares. Antes de prosseguir, vejamos a tradição martinezista acerca dos números:
- O 1 é a unidade, o primeiro princípio de todo ser, espiritual e temporal, e pertence unicamente ao Criador.
- O 2 é o número da confusão em que se encontram os espíritos perversos e os homens que se unem ao intelecto desses espíritos maus.
- O 3 provém do mercúrio, do sal e do enxofre, que são os princípios “espirituosos” que compõem todas as formas, mas também é dado às formas dos habitantes celestes.
- O 4 faz alusão à Quádrupla Essência Divina, é o número usado pelo Criador para a emanação e emancipação do espírito menor e é nele que o homem deve aprender a conhecer todos os números das potências espirituais nele inatas, visto que teve a infelicidade de ter sido privado desses conhecimentos.
- O 5 é o número do espírito demoníaco empregado na ação contra a ação puramente espiritual divina.
- O 6 é o número pelo qual o Criador fez sair de seu pensamento toda espécie de imagem de formas corporais aparentes que subsistem no círculo universal – os seis dias-pensamentos que o Criador empreendeu para dar cabo da criação material.
- O 7 faz referência ao Espírito Santo pertencente aos espíritos septenários, provém do absoluto denário, foi empregado pelo Criador para a emanação de todo espírito para fora de sua imensidade divina e trata-se da segunda potência da divindade.
- O 8 refere-se ao espírito duplamente forte pertencente ao Cristo, ou duplo espírito, que outrora fora confiada ao primeiro menor 4 para que ele manifestasse a Glória e a Justiça do Eterno contra os espíritos prevaricadores.
- O 9 é um número demoníaco que pertence à matéria – trata-se da junção do quinário imperfeito e corruptível com o quaternário perfeito e incorruptível de sorte a degradar a potência espiritual divina do menor 4.
- Enfim, o 10 é o número divino ou da grande e primeira potência divina e nele toda espécie de número de criação está contido e pode ser extraído – os números terrestres, menores, maiores, superiores… Uma vez que 1 + 2 + 3 + 4 = 10, o denário é aquele que completa os quatro números da potência divina e tão somente pode ser operado pelo próprio Criador.
Seguindo com a narrativa mitológica, uma parcela dos primeiros espíritos cogitou agir de modo diferente daquele previsto pelas leis e preceitos estabelecidos por Deus e, dessa forma, prevaricou. Criados livres e distintos, Deus não poderia interferir no desejo desses espíritos sem se colocar contra a própria Lei que havia atribuído a esses seres. A PREVARICAÇÃO, então, deu-se pela pretensão dos espíritos quanto a emanar e a criar, ou seja, quanto a agirem como Causas Primeiras, criadores em posição semelhante à de Deus. Ciente dessa intenção, contudo, o Criador intercede e, por meio da junção de seu pensamento, com sua vontade e sua ação (ou seja, por meio do ternário da criação), empregou diferentes verbos criadores. A fim de conter os espíritos rebeldes, o universo é criado para servir de limite material para a ação demoníaca.
Nesse ponto, cabe ressaltar a compreensão martinezista acerca da distinção entre os processos de CRIAÇÃO e EMANAÇÃO. A criação pertence somente à matéria aparente, que, tendo provindo unicamente da imaginação divina, deve voltar ao nada no fim dos tempos, mas a emanação pertence aos Seres Espirituais que, uma vez que coincidem com a própria Quádrupla Essência Divina, são reais e imperecíveis. Todos os espíritos, maiores ou menores, existirão eternamente em uma personalidade distinta, na Imensidade Divina. Um ponto importante a respeito do processo de criação que por muitas vezes foi destacado por Pasqually é o de que a partir dela são introduzidos, no Quadro Universal, noções de TEMPO e de ESPAÇO.
O Homem, denominado espírito MENOR 4, é, então, emanado, a fim de ocupar posição central no universo que acabara de ser criado. Tratava-se de uma posição de realeza, destaque e governança sobre os espíritos anteriores, bons e maus, que somente fora alcançada devido ao empreendimento de três importantes operações determinadas por Deus: a concepção dos três princípios-verbos que compõem o universo total, geral e particular (as três partes do universo material) e que, sendo cumprida, legou ao Homem a Lei, o Preceito e o Mandamento, garantindo-lhe o status de HOMEM-DEUS da Terra Universal. Emanado à imagem e semelhança de Deus, o Homem porta o selo quaternário, ressonante com a Quádrupla Essência Divina, e possui três faculdades de expressão: Pensamento, Vontade e Ação. Dotado de toda a glória, potência e virtude, cabia a ele velar para que a ação dos espíritos caídos não ultrapassasse os limites do mundo recém criado.
Pasqually imaginou a terra como possuidora de uma forma triangular e o universo material foi proposto de maneira tripartida: 1) o geral (ou a terra triangular), de onde emanam todos os alimentos necessários para substanciar o particular (gerado pela Vontade divina); 2) o particular, ou seja, todos os seres, ativos e passivos, que habitam os corpos celestes de terrestres (gerado pela Palavra ou ação divina); e 3) a imensa circunferência ou totalidade que contém o geral e o particular (gerada pelo Pensamento divino). No que tange à organização da terra triangular em particular, conforme apontamos no início deste capítulo, suas três regiões formam um contraponto às quatro regiões celestiais e estão relacionadas aos três verbos criadores e aos três elementos alquímicos (mercúrio, sal e enxofre). Por sua vez, a compreensão da tripartição do universo como um todo é sobremaneira importante para se compreender as operações realizadas pelo Homem para a sua realização enquanto governante e rei. Qual, mais especificamente, a natureza dessas três operações? Deus disse para Adão comandar todos os animais ativos e passivos, pois eles lhe obedeceriam. Operando dessa maneira, o Homem conheceu plenamente o universo particular e recebeu a Lei. A segunda ordem foi para comandar a terra, pois ela também lhe obedeceria, e, assim, o homem conheceu plenamente o universo geral e recebeu o Preceito. Por fim, a terceira operação depreendeu-se da ordem para comandar todo o universo criado, que todos os habitantes espirituais lhe obedeceriam, e foi assim que Adão conheceu plenamente a criação universal, a imensa circunferência, garantindo o recebimento do Comando.
Os Espíritos Inferiores Setenários correspondem aos primeiros agentes que operam toda espécie de movimento nas formas criadas no círculo universal. Isso significa que, a partir do momento da queda dos primeiros espíritos e da criação do universo material, os Seres Espirituais que compunham as quatro classes anteriormente apresentadas ganharam novas funções e passaram a habitar lugares diferentes do Quadro Universal. As diferentes qualidades e propriedades das formas, tais como o som, o movimento, a ação e a reação, não seriam perceptíveis se essas formas não tivessem em si um ser inato chamado de partícula do Eixo Fogo Central Incriado, ou seja, se não possuíssem uma dessas partículas, as formas materiais não seriam susceptíveis às ações que nelas observamos. Essas partículas, contudo, precisam ser ativadas por uma causa espiritual superior e é justamente esse o papel dos Agentes Setenários.
Uma vez que já ilustramos o Quadro Universal no momento da emanação dos primeiros Seres Espirituais na Imensidade Divina, bem como a terra em sua forma triangular, agora nos deteremos na estrutura do universo, que compreende o espaço entre a Imensidade Divina e a Terra. Isso nos permitirá, por exemplo, compreender a natureza do Eixo citado no parágrafo anterior.
A partir do momento da queda dos primeiros espíritos e da consequente criação material, o Quadro Geral do Universo passa a ser dividido em três grandes porções chamadas IMENSIDADES. A primeira delas é a que já apresentamos, chamada de IMENSIDADE DIVINA, e nela apenas Deus pode penetrar. Por sua vez, os sete céus celestes universais formam a IMENSIDADE CELESTE e, então, o que transcende os mencionados círculos da Imensidade Celeste é chamado de IMENSIDADE SUPRACELESTE, a Imensidade intermediária entre a Divina e a Celeste, que não apenas limita, como também dirige a ação dos sete agentes principais da criatura universal da Imensidade Celeste. É no Supraceleste que se opera o pensamento e a vontade divina; é dessa região que provém a ordem, a virtude e a potência de ação de todos os espíritos que agem no universo. Os sete céus recebem do Supraceleste todas as virtudes e todos os poderes e, em seguida, os comunicam ao corpo geral terrestre.
A Imensidade SUPRACELESTE é dividida em quatro círculos espirituais divinos que estão contíguos ao Círculo da Divindade e contém os seres espirituais desprovidos de corpos de matéria. Esses seres receberam, no momento da sua emancipação, as leis divinas particulares pelas quais devem operar e, assim, nenhum ser que habita esses quatro círculos opera as mesmas ações, nem as mesmas potências que os habitantes dos demais círculos. O Eterno criou e emanou tudo por meio de regras fixas e imutáveis, isto é, através de peso, número e medida. Essas três coisas significam a lei, o preceito e o comando dados aos seres espirituais divinos e significam ainda a virtude, a faculdade e a potência que o Criador colocou em seu Menor desde a sua emancipação, para que ele operasse segundo o seu pensamento, a sua intenção e a sua ação nas quatro regiões celestes e nas três terrestres. A emancipação dos espíritos da Imensidade Supraceleste ocorreu tão logo quando a prevaricação dos primeiros espíritos foi cometida. A grande faculdade dada à Imensidade Supraceleste é a de ser duplo limite aos espíritos malignos e tal limite é concretizado pela ação do Eixo Fogo Central Incriado, responsável pela consolidação da divisão entre as Imensidades Celeste e Supraceleste.
O primeiro Círculo da Imensidade Supraceleste contém o número DENÁRIO e, uma vez que só pode ser operado pelo Criador, é chamado de círculo espiritual divino. Dele, podem ser extraídos todos os números terrestres, menores, maiores e superiores. Contudo, ele é considerado indivisível. É ele que completa, divide e subdivide todos os números inatos da criação, geral e particular; corporal e animal; e espiritual divino. Por essa razão, esse número sempre foi visto pelos sábios como número ímpar e representante da Quádrupla Essência Divina. O centro desse círculo é o modelo da Divindade de onde provêm toda emanação e toda criação e, de modo geral, esse círculo representa a unidade absoluta de Deus e, de certo modo, podemos entender uma coincidência relativa desse círculo com a própria Imensidade Divina.
O segundo Círculo da Imensidade Supraceleste contém o número dos ESPÍRITOS SETENÁRIOS. O setenário depreende-se do número absoluto do denário e foi empregado pelo Criador para a emancipação de todos os espíritos para fora de sua Imensidade Divina. Trata-se da primeira emanação espiritual que o Criador emancipou do círculo de sua Divindade. Os espíritos setenários são depositários da Lei do Criador e, como dissemos, são os agentes que operam toda espécie de movimento nas formas criadas por meio da ativação da partícula do Eixo Fogo Central Incriado presente nas diferentes criaturas.
O terceiro Círculo, por sua vez, contém o número dos ESPÍRITOS TERNÁRIOS. Trata-se da segunda emanação espiritual emancipada do círculo da Divindade. Os Espíritos Ternários são os depositários do Preceito do Criador, são os formadores do Eixo Fogo Central Incriado que atua como limite para a ação dos primeiros prevaricadores e é a fonte da matéria (mercúrio, sal e enxofre).
Enfim, o quarto Círculo contém o número do ESPÍRITO MENOR QUATERNÁRIO e posiciona-se defronte do Círculo Denário. Trata-se da terceira emanação espiritual emancipada do círculo da Divindade. O Espírito Menor, isto é, o Homem, é depositário do comando espiritual divino. Ele tem toda potência sobre todo ser espiritual emancipado pelo Criador na Imensidade Supraceleste.
Uma nota importante é que o Criador não colocou na Imensidade Supraceleste uma classe particular de ESPÍRITOS OCTONÁRIOS 8, Espíritos Duplamente Fortes, tal como havia na Imensidade Divina. Aliás, essa classe de espíritos não se encontra mais na Imensidade Divina e isso porque, pela prevaricação dos primeiros espíritos, fazendo força de lei sobre todas as suas criaturas espirituais, o Criador emancipou sua ação de dupla potência para ir operar sua justiça e sua glória nas três diferentes Imensidades, sem distinção. Por isso é ensinado que o espírito duplamente forte está com o homem quando ele o merece e se manifesta quando o homem se torna digno de sua ação duplamente poderosa.
Pasqually também se detém a diferenciar de maneira clara as diferenças subjacentes entre as Imensidades Divina e Supraceleste que poderiam ser consideradas como idênticas. Para o pensamento martinezista, os Agentes Espirituais Divinos operam na Imensidade Infinita do Criador e os Agentes Supracelestes operam apenas em uma Imensidade limitada porque a Imensidade Supraceleste é passiva, está sujeita à ação do tempo, enquanto a Imensidade Divina não está.
Em relação à Imensidade CELESTE, ela é composta por TRÊS CÍRCULOS. O primeiro é chamado de RACIONAL ou ESPIRITUAL, é o círculo de Saturno (1) e é o mais elevado. Saturno ou, simplesmente, o Centro Celeste, é o lugar onde os justos aguardam, o lugar de repouso dos santos pais reconciliados com o Criador e serve de degrau para os Círculos da Imensidade Supraceleste. O Círculo Racional separa os céus planetários dos quatro Círculos Supracelestes.
O segundo Círculo Celeste é chamado de VISUAL ou INTELECTUAL e é o Círculo planetário do Sol (2). Os demais círculos planetários inferiores, ou seja, o de Mercúrio (3), de Marte (4), de Júpiter (5), de Vênus (6) e da Lua (7), estão compreendidos no círculo chamado SENSÍVEL ou SENSORIAL.
No Quadro Universal, o círculo Sensível é contíguo ao Visual, que é contíguo ao Racional que, por sua vez, é contíguo à Imensidade Supraceleste. Tal organização proporciona um vislumbre da universalidade do Quaternário que domina, preside e dirige todas as coisas. A junção da divisão ternária (círculos Racional, Visual e Sensível) com a divisão setenária (Saturno, Sol, Mercúrio, Marte, Júpiter, Vênus e Lua) dá origem ao poderoso número Denário do Criador, do qual toda coisa criada proveio. Pasqually destaca que a força das influências planetárias precisa ser temperada para que se comuniquem benignamente com o corpo geral terrestre e com todos os seus habitantes.
Os Círculos de Saturno, do Sol, de Mercúrio e de Marte, por estarem mais próximos da Imensidade Supraceleste, são chamados de CÍRCULOS CELESTES MAIORES e são mais fortes em ação e reação do que os três Círculos planetários que se encontram abaixo deles, que eles governam por sua poderosa virtude. Os últimos três planetas, Júpiter, Vênus e Lua encontram em Júpiter a potência da putrefação, seu líder. Vênus coopera para a concepção, posto que, sem a concepção, o seminal reprodutivo de cada ser de forma permanece sem efeito e a Lua, ou Invólucro Úmido, coopera, por seu fluido, para modificar e mitigar a ação e a reação dos principais líderes da vivificação temporal, que são o Eixo Fogo Central Incriado e o corpo solar. Esses dois líderes são, por sua ligação e sua íntima correspondência, os primeiros a cooperarem para a ação de todos os corpos que ornam o universo.
A respeito dos líderes da vivificação temporal, o EIXO FOGO CENTRAL INCRIADO, que separa as Imensidades Celeste e Supracelente, é o principal deles. Ele dá a vida e o movimento a toda espécie de corpo e é o agente geral, particular e universal que é contíguo aos Círculos da Imensidade Supraceleste. O Eixo Fogo Central Incriado é o órgão dos Espíritos Inferiores que o habitam (Espíritos Ternários) e nele operam sobre o princípio da vida e sobre o princípio da matéria corporal aparente. Os Espíritos Inferiores são o órgão dos Espíritos Maiores e os Espíritos Maiores são o órgão da Divindade. Dessa maneira, evidencia-se que a correspondência do Eixo Fogo Central Incriado com a Divindade é quaternária.
O SOL, por sua vez, é o segundo líder – aquele que age, reage e vivifica a vegetação de todos os corpos particulares e do fogo geral terrestre. Pasqually enxerga o Sol como astro superior a todos os outros e o tem como feição do Eixo Fogo Central Incriado. O Sol é o astro que divide a distância que há entre o Círculo Divino, ou Denário, e o planeta mais inferior, que é a Lua. Por sua posição no lugar senário, quando os planetas são contados a partir da Lua, o Sol faz o coroamento dos seis pensamentos que foram empregados pelo Eterno para a criação universal. Em conjunto com o Eixo Fogo Central Incriado e com Saturno, o Sol opera todas as Leis dadas pelo Criador para a duração da criação universal.
Retomando a narrativa mitológica, os espíritos prevaricadores da primeira queda estavam dentre os Espíritos Maiores 7 e Inferiores 3, de modo que, em um primeiro momento, a corrupção não se comunicou até o círculo quaternário do menor. Por essa razão, o Criador deu ao menor 4 uma potência tão absoluta sobre os dois outros Círculos que o Espírito Menor estava destinado a manifestar a Glória e a Justiça divinas contra esses prevaricadores.
A EMANCIPAÇÃO do Círculo Menor 4 designa e completa a Quádrupla Potência Divina, sem a qual o Menor 4 não teria nenhum conhecimento perfeito da Divindade. Ela não teria acontecido sem a prevaricação dos demônios, sem a qual não teria havido a criação material temporal terrestre e celeste, ou seja, não existiria a Imensidade Supraceleste e toda emanação espiritual teria permanecido na Imensidade Divina. Considerando, pois, o que ocasionou a prevaricação dos maus espíritos, aprendemos a entender a necessidade de toda coisa criada e de todo ser emanado e emancipado.
Habitado pelo Homem, o centro da criação é chamado de PARAÍSO TERRESTRE – a terra elevada acima de todo sentido – composto pelo triângulo formado por Saturno, Sol e Mercúrio Tivesse o Homem mantido uma vontade semelhante ao do Criador, Deus e Homem teriam feito, ambos, uma só operação. Contudo, os seres caídos conseguiram incitar o Homem a ultrapassar os limites impostos pelas leis e preceitos divinos. Entregue ao livre-arbítrio, Adão refletiu acerca de si mesmo e da grande potência que manifestara por meio das três primeiras operações. Sua inquietação chegou a ser conhecida pelos espíritos prevaricadores e um dos chefes demoníacos conseguiu com que Adão sucumbisse à tentação e operasse de acordo com o pensamento demoníaco. A QUARTA OPERAÇÃO ADÂMICA foi aquela que, anteriormente, os primeiros espíritos caídos tão somente puderam conceber e possuía o intento dele mesmo tornar-se criador. Retendo a impressão do conselho dos demônios, contraindo uma vontade má e empregando toda a sua potência contra o Criador, coisa que os próprios demônios não alcançaram, a prevaricação de Adão foi considerável.
Em sua quarta operação, recordando-se dos verbos-criadores que possuía, Adão procurou imitar a Deus e a seus seis atos de pensamentos criadores, mas, ao invés de criar uma forma gloriosa, deparou-se com uma matéria tenebrosa com uma natureza totalmente oposta à sua. Essa forma foi posteriormente chamada de HUVA ou Homaça. Irritado, Deus expulsou o Homem do Paraíso e garantiu o seu aprisionamento na matéria por ele mesmo criada. Dessa maneira, Adão criou sua própria prisão, operou a transformação de sua forma gloriosa na forma material e passiva que o encerraria em uma privação do Divino. Fora da “terra elevada de todo o sentido”, junto a Huva, Adão produziu formas semelhantes à dele mesmo e isso ocorreu com uma furiosa paixão dos sentidos.
Para Pasqually, os MAUS PENSAMENTOS são gerados pelos maus espíritos, assim como os bons pensamentos provêm dos bons espíritos. Desse modo, o mal encontraria sua origem nos espíritos que fizeram oposição às Leis, aos Preceitos e aos Comandos do Eterno e deixaria de existir no caso desses espíritos novamente se aproximarem dessas mesmas leis, preceitos e mandamentos. Por conseguinte, o crime do Espírito Menor 4, embora parta de sua própria vontade, não vem diretamente de seu pensamento, mas do pensamento que lhe foi sugerido pelos espíritos prevaricadores. Sendo o dois o número da operação de confusão, é ele que dirige a operação simples e particular que se faz pela pura vontade do Espírito Menor com o espírito demoníaco – ou seja, é ele que representa o encontro do Homem com o espírito demoníaco, que ocorre de modo que esses dois seres se comportem como se fossem somente um, pela ligação de seu pensamento, sua intenção e sua ação, ainda que sejam dois sujeitos distintos um do outro (susceptíveis de separação). É por essa razão que o encontro desses dois espíritos só pode gerar o dois, a confusão: desse encontro, a alma do menor perde sua própria potência espiritual e passa a agir de acordo com as determinações do espírito demoníaco.
Em seguida à prevaricação por meio da quarta operação e consequente queda, em estado de grande arrependimento, Adão fez suas lamentações e reclamou a clemência do Deus vivo, que é HELY, o Cristo (Espírito Maior 8). Depois do arrependimento verdadeiro do Homem, Deus comprometeu-se a libertá-lo e, para isso, passou a enviar, para habitarem entre a humanidade, os ESPÍRITOS ELEITOS que fazem o papel de verdadeiros condutores espirituais. No aguardo da concretização dessa promessa divina, o homem deve posicionar-se contra as sugestões provenientes do pensamento demoníaco. A vantagem que os homens têm sobre os demônios é a de poder, segundo seu desejo e vontade, romper seu limite e agir como espíritos puros, embora sujeitos ao tempo.
Se, por um lado, o encontro do Homem com o espírito demoníaco produz o número dois, a partir do momento que decaiu, por outro lado, quando o Menor se encontra com um espírito bom, outro processo é originado: estabelecendo comunicação prévia com a alma do Menor e comunicando seu espírito-intelecto, o espírito bom prepara-a para um tipo específico de junção. A alma, por essa junção com o espírito-intelecto, adquire o número dois, que, juntando-se com o espírito bom, forma o ternário (alma-intelecto-espírito maior). Pasqually, entretanto, segue ainda mais adiante: uma vez que o espírito maior bom tira sua ação imediata e opera em conjunto com Deus, no encontro com o espírito bom, a alma encontra, em consequência, sua correspondência regular com as quatro potências divinas (Quádrupla Essência): ALMA-INTELECTO-ESPÍRITO-DEUS. Para o pensamento martinezista, da mesma forma que o corpo do Homem é o órgão da alma, o meio pelo qual as suas intenções, palavras e ações são expressos, a alma do Menor é o órgão do intelecto, o intelecto é o órgão do espírito maior e o espírito maior é o órgão do Criador. Isso significa, pois, que para se religar ao Criador, o homem decaído deve contar com o auxílio e a intervenção de um espírito bom. Eis, então, o sentido de todo o trabalho exorcista-evocatório ou simplesmente TEÚRGICO dos Elus Cohen, simultaneamente voltado ao exorcismo dos maus espíritos e à evocação dos bons. Interessantemente, Pasqually encontra os elementos que compõem esses processos ilustrados na desigualdade dos cinco dedos da mão. Para ele, o dedo médio representa a alma, o indicador representa o intelecto bom e o polegar representa o espírito bom, enquanto os outros dedos ilustram o espírito e o intelecto demoníacos.
O Quadro Universal, ou seja, o modo como o universo se organiza, bem como a maneira como ele é habitado pelas diferentes classes de seres, modificou-se duas vezes. Como houve duas prevaricações, houve igualmente duas mudanças nas leis de ação e operação dos habitantes da Imensidade, mudanças que consistem em que esses seres, que antes tinham apenas funções puramente espirituais, tornaram-se mais sujeitos ao temporal. Pela prevaricação dos primeiros espíritos, o tempo e o universo material foram criados. Então, os habitantes das diferentes classes da Imensidade Divina foram empregados para contribuir na manutenção e na duração fixa do universo. Por sua vez, pela prevaricação do homem, esses mesmos espíritos que já estavam sujeitos à manutenção do material, foram ainda mais sujeitos a contribuir para a reconciliação e a purificação dos Menores, para cuja reconciliação esses espíritos agem sobre a alma espiritual dos homens.
Uma vez introduzido ao conhecimento do bem e do mal e, agora, habitando a terra junto aos demais seres que até então governava, o Homem não mais estava em estado de glória, quando não tinha a necessidade da ação dos intelectos bons ou maus para conhecer o pensamento do Criador ou do príncipe dos demônios. Primordialmente um ser PENSANTE (onisciente com o Divino), tornando-se susceptível à comunicação dos intelectos, o Homem tornou-se PENSATIVO. A partir desse momento, TRÊS ESPÉCIES DE VIDA passam a habitar o homem: 1) a vida de matéria, inata aos animais racionais e irracionais e proveniente da operação espiritual divina do Eixo Fogo Central Incriado, 2) a vida espiritual demoníaca, que pode ser incorporar à vida passiva, e 3) a vida espiritual divina, que preside as duas primeiras.
A Hely, Espírito Maior 8, duplamente forte, Pasqually atribuiu três grandes atos: a reconciliação de Adão após a queda, a reconciliação de todo o gênero humano por sua encarnação como Jesus e, no fim dos tempos, a reintegração final de todos os seres. Com relação ao primeiro grande ato, esse acontecimento refere-se ao coroamento da obra adâmica – o coroamento de Eva, do corpo que o homem passara a ocupar. A obra, então, fica num meio termo entre pensante e pensativo, entre divino e demoníaco. Ainda que Deus tenha abençoado Adão pela segunda vez, a ele entregou uma potência bastante inferior quando comparada com aquela que tinha antes da queda. Também foi ordenado a Adão que, junto a Eva, fosse engendrada toda a sua POSTERIDADE DE MENORES.
Como apontado, Adão passou do corpo de glória para o corpo material. Por consequência, o CULTO HUMANO, conforme transmitido por Adão para a sua posteridade, possuía dois fins, um espiritual e outro material, diferenciando-se do culto originário, que possuía apenas um fim espiritual. São 10 os diferentes tipos de culto: de expiação; de graça particular e geral; contra os demônios; de preservação e de conservação; contra a guerra; para se opor aos inimigos da lei divina; da fé e da perseverança na virtude espiritual divina; para fazer acontecer a descida do Espírito Divino; para fixar consigo o Espírito Conciliador Divino; e anual ou de dedicatória de todas as operações ao Criador.
No final de tudo, a posteridade menor espiritual de Adão deve ser REINTEGRADA em seu Círculo originário, defronte do Criador. Nesse processo, os Menores 4 que restarem a ser reconciliados serão chamados pelo Eterno e a justiça que Ele exercerá sobre esses Menores será infinitamente mais forte do que a que ele exerceu e exercerá contra os demônios. Isso se deve a Deus ter dotado o Menor 4 de uma autoridade superior, justificando uma cobrança também superior. O emprego da liberdade, diz Pasqually, não pode ser ocultado do Eterno. É sobre essa liberdade que Deus julgará todos os Menores 4, pois todo ser espiritual foi emanado forte e duplamente forte. A liberdade gera vontade e a vontade acata o pensamento bom ou mau.
REFERÊNCIAS
AMADOU, Robert. “Introdução: a Coisa, a história e a urgência” in PASQUALLY, Martines de. Tratado da reintegração dos seres: em sua primeira propriedade, virtude e potência espiritual divina. Curitiba: Diffusion Rosicrucienne, 2007.
CORRÊA, Ivan. Teodiceia psíquica: os princípios psíquicos de bem e mal no paradigma junguiano e sua discussão no midrash judaico-cristão de Martines de Pasqually. São Paulo: Incógnito, 2014.
CORRÊA, Ivan. Jung e a Sofia: imagens arquetípicas da Eterna Sabedoria. Curitiba: Appris, 2020.
PASQUALLY, Martines de. Tratado da reintegração dos seres: em sua primeira propriedade, virtude e potência espiritual divina. Curitiba: Diffusion Rosicrucienne, 2007.
Deixe uma resposta