História dos Desenvolvimentos Gnósticos Modernos – Parte 2

Continuando a História dos Desenvolvimentos Gnósticos Modernos, hoje falaremos sobre o movimento de Vintras, que surge um ano após a morte do criador do movimento joanita. Há quem estabeleça conexões entre os joanitas e os membros da Obra da Misericórdia. Há interessantes paralelos entre conceitos relembrados por este movimento e conceitos que serão trabalhados na Igreja Gnóstica, mais à frente. Como na primeira parte,  ainda que essa história não seja necessariamente sobre um movimento gnóstico propriamente dito, seus desdobramentos irão mais tarde ao encontro dos ressurgimentos gnósticos.

Vintras

Um ano depois da morte de Palaprat, Pierre-Eugène-Michel Vintras (1807-1875) teve visões com São Miguel, São José, a Virgem Maria e o Espírito Santo. Ele foi informado da vinda do Paracleto e da Era do Espírito Santo. Tais princípios ecoam conceitos encontrados no Gnosticismo antigo, como no Tratado Tripartite, e as doutrinas de Joaquim de Fiore, do século XII, relativas às três eras: a Era do Pai, antes do Cristo, a Era do Filho, desde a encarnação de Jesus, e a Era do Espírito Santo, ainda porvir. Vintras também afirmou que ele foi informado que era a reencarnação do profeta Elias. Também é interessante saber que Vintras afirmou que lhe disseram que Charles Naundorf era o “verdadeiro rei da França”, pois se sabe que vários conhecidos ocultistas franceses e belgas da primeira metade do século XX eram “naundorfistas”[1]Movimento construído em torno da hipótese de que um certo Karl Wilhelm Naundorf, um aventureiro, “emergiu” em Berlim em 1810 e alegou ser filho do rei francês Louis XIV e Maria Antonieta.. Outra afirmação interessante, dita por Milko Bogaard, é que Vintras tinha uma espécie de “mentora”, a Madame Bouche, uma visionária que morava na Place St. Sulpice em Paris. Afirma-se que ela possuía uma conexão com os joanitas.

Vintras então formou um movimento baseado em suas visões chamado l’Ouvre de la Miséricorde (Obra da Misericórdia), que conseguiu atrair inclusive padres católicos romanos em um primeiro momento. Diz-se que neste movimento muitas pessoas presenciaram milagres como hóstias como que sangrando, vinho transformado em sangue, aparições, etc.

Em seu livro “História da Magia”, Eliphas Lévi faz um relato dos eventos que levaram Vintras a acreditar que fora “eleito” para proclamar a vinda do Paracleto. Lévi inicia seu capítulo sobre Vintras, intitulado curiosamente de “Alucinações”, informando o leitor sobre uma seita que rotula como “Salvadores de Luís XVII”. Agentes deste grupo estavam na Normandia, dos quais o pretenso Luís XVII afirmava ser duque. Esta seita aparentemente escolheu Vintras como seu “instrumento” de propaganda para o movimento. Serge Hutin em seu livro “Les Gnostiques” (publicado em 1958) refere-se aos Salvadores de Luís XVII como uma “Sociedade de Iluminados”, em contrapartida a Lévi. É geralmente afirmado que este grupo começou como uma organização estritamente política que mais tarde se transformou em uma organização quase mística. Hutin também nos informa que Naundorf fundou uma “Igreja Católica Evangélica” no seio da Igreja Católica Romana. A doutrina de Naundorf foi publicada em “La Doctrine Celeste”, publicada em 1839. Lévi continua com a história em que Vintras é visitado por um ‘mendigo’ que o chama de Pierre Michel. Uma carta misteriosa endereçada a uma Sra.de Generès em Londres, escrita e assinada por M. Paul de Montfleury de Caen, é deixada para trás pelo estranho mendigo na mesa de Vintras. Não obstante o endereço, esta carta pretendia colocar perante o duque da Normandia as verdades mais importantes de nossa Santa Religião Católica, Apostólica e Romana.  Vintras passou então a se dedicar a Luís XVII. Houveram outras comunicações, como uma “epístola do paraíso” endereçada a Vintras por  Pierre Michel, o qual considerava Vintras como o Arcanjo Miguel “por uma associação de ideias que é análoga à dos sonhos”, critica Lévi em sua obra. 

Vintras levitando

Lévi afirma que esses milagres foram testemunhados por muitos membros bem respeitados da comunidade em várias ocasiões. Os padres da “Obra da Misericórdia” celebravam o “Sacrifício Provictimal de Maria”[2]Uma espécie de rito de purificação no qual onde se buscava a libertação dos grilhões da matéria e a aproximação da redenção espiritual que viria através da Terceira Era. no oratório de Tilly-sur-Seulles. Mas a oposição estava prestes a vir. Um ex-membro da seita de Vintras, Alexandre Geoffroi[3]A. E. Waite revela-nos que provavelmente não foi Geoffroi que escreveu., publicou um panfleto em 1851 chamado “Le Prophète Vintras”, acusando Eugène Vintras de homossexualidade e condução de missas secretas nas quais todos os participantes estavam nus, etc.

A popularidade da Obra de Vintras acabou atraindo a ira do Papado. Em 1843 seu grupo de Tilly-sur-Seulles foi condenado pelo Papa Gregório XVI. Em 1841, o Bispo de Bayeux havia o denunciado por “ensinar doutrinas incompatíveis com a fé católica”. Por volta de 1842-43, Vintras foi preso sob acusação de trapaça e julgado em Caen, condenado a cinco anos de prisão. Após livre da condenação, em 1848, encontrou asilo na Inglaterra. Mas a oposição se tornou mais forte e depois de ter sido condenado pelo Arcebispos de Bordeaux e Nancy e mesmo pelo Papa Pio IX (em 1851, quase dez anos depois da condenação pelo Papa Gregório XVI), Vintras deixou a França e vagou pela Europa. Por fim, finalmente retornou a Lyon, onde fundou o “Sanctuaire Intérieur du Carmel d’Elie” ou “Santuário Interior do Carmelo de Elias”. Vintras também estabeleceu uma filial em Florença, Itália, o “Carmel Blanc”. Por alguns anos, a “Igreja do Carmelo”, como a Igreja de Vintras ficou conhecida, gozou de uma modesta prosperidade, com filiais estabelecidas na Espanha, Bélgica, Inglaterra (1848) e Itália (Florença).

Parece que Vintras acreditava que sua forma de ministério era uma renovação da Tradição Católica. As suas publicações, como por exemplo seu livro “Evangeli Éternel”, são escritas na tradição da Igreja Católica Romana. A maioria dos membros do culto de Vintras se considerava “cristãos fiéis”. Sua Santa Missa era idêntica à católica romana – a controvérsia sobre Vintras dizia mais respeito a seus “dons”. As “hóstias sangrentas”, as sessões com os Santos e a Virgem Santa etc. levaram à oposição ao seu culto, incluindo a proibição papal. O círculo de Vintras também incorporou o aspecto da Madona Negra em suas doutrinas. O aspecto de “Naundorf’” poderia ser outra razão para a oposição a Vintras. Ele também aparentemente atraiu outros pequenos movimentos que mais tarde se fundiram com a sua Igreja do Carmelo. Um desses grupos era os “Irmãos da Doutrina Cristã”, fundado em 1838 pelos três irmãos Baillard, todos sacerdotes. Os irmãos estabeleceram duas casas religiosas em Alsácia e Lorena. Suas doutrinas eram semelhantes às de Vintras, incluindo a ênfase na vinda do Espírito Santo.

Outro personagem polêmico do movimento é o padre Joseph-Antoine Boullan (1824-1893), que provavelmente é mais conhecido como o Abbé de Boullan. Boullan tornou-se ativo na década de 1850, quando fundou a “Sociedade para a Reparação de Almas”, juntamente com uma ex-freira, Adele Chevalier. Geralmente afirma-se que Boullan “se especializou” em “exorcizar demônios por meios não convencionais”. Depois de sua condenação por fraude e de cumprir pena na prisão, na qual ele foi suspenso de seus deveres sacerdotais, Boullan se apresentou voluntariamente no Santo Ofício (ou seja, a Inquisição) em Roma, que reverteu sua decisão anterior. As doutrinas de Boullan foram escritas em Roma na época e este caderno ficou conhecido como “Cahier Rose”, que mais tarde foi encontrado pelo romancista Joris Karl Huysmans após a morte de Boullan em 1893. O “Cahier Rose” aparentemente foi trancado na Biblioteca do Vaticano depois de ser descrito como um “documento chocante”. Há fontes que afirmam que Boullan foi “protegido pela Igreja” e se infiltrou no culto de Vintras com o único objetivo de derrubá-lo.

Aparentemente, Boullan conheceu Vintras pouco antes da morte deste em 1875. Boullan alegou ser a reencarnação de São João Batista, mas essa proclamação foi feita após a morte de Vintras, obviamente. Boullan juntou-se à Igreja do Carmelo de Vintras e tornou-se seu líder quando Vintras morreu. Logo depois, ocorreu um cisma, porque a maioria dos membros se recusou a aceitar a supremacia dele. Alguns seguiram o seu grupo dissidente, que permaneceu ativo até a sua morte em 1893. Por volta de 1889, o grupo de Boullan foi “infiltrado” por Stanislas de Guaita e Oswald Wirth. É geralmente assumido que a seita de Boullan usou um rito derivado de uma impressão do século XVIII do “Cult des Goules”. Boullan é retratado em “La Bas”, de Joris-Karl Huysmans, como Dr. Johannes. É bem provável que ele teria ficado virtualmente desconhecido para o mundo em geral se não fosse o trabalho de J. K. Huymans.

A “Igreja do Carmelo” provavelmente não era uma Igreja formal, parece que não havia hierarquia nem liderança estritas. Vintras não era Patriarca nem Bispo da Igreja. Vintras nomeou vários “Pontifs Divins”, com cada “Pontif” liderando um grupo ou comunidade. Segundo Terje Dahl Bergerson, homens como o Abbé Boullan, Abbé Roca e Louis Van Haeckel foram ordenados Pontifs Divins na Igreja do Carmelo. Após a morte de Vintras, esses homens, e provavelmente outros, estabeleceram suas próprias comunidades seguindo o modelo da Ordem Carmelita. Vários desses grupos desenvolveram sua própria Teologia. Alguns dos que seguiram Van Haeckel desenvolveram uma visão mais sombria das coisas e aparentemente se associaram a certos ocultistas que acreditavam na eficácia e precisão da Magia Negra onde também desenvolveram uma Teologia Luciferiana. Bergerson corrige esta informação mais tarde afirmando que as fontes (ou a sua interpretação delas) não eram confiáveis, pois tendo em vista o espírito heterodoxo das orientações esotéricas especificamente gnósticas e os nossos modernos ideais de humanismo, o mito de Lúcifer não seria nem um pouco sombrio[4]Por exemplo, a interpretação do mito de Lúcifer por H. P. Blavatsky não tem nenhuma correlação com algo sombrio ou de Magia Negra e o mesmo se aplicaria à doutrina de Van Haeckel. Em … Continue reading.

Além disso, Bergerson também menciona outro descendente da Obra da Misericórdia de Vintras, John Kowalski (+1941), que continuou o trabalho de Vintras na “Ordem Maria Vitae”. A Ordem causou tanta controvérsia quanto o próprio Vintras, introduzindo certas ideias como a abolição do celibato entre o Clero, freiras e monges. A Ordem Maria Vitae tem sua própria igreja, “Eglise Vielle Catholique Maria Vitae”. A sua afiliação à Igreja do Carmelo descende de Feliksa Magdalen Kozlowskaya (+1912), que aparentemente “iniciou” Kowalski nos ideais e trabalhos do “Carmel Elie”, que tinha sua “sede” no início do século XX em Varsóvia, Polônia.

Finalmente, Bergerson menciona outro místico polonês “gnóstico”, Maria Naglowska (+ início do século XX). Naglowska aparentemente conhecia Pascal Beverly Randolph, com quem ela tinha algum tipo de relação de trabalho. Ela era uma mística carismática (“canalizava” ou “sintonizava” com a Virgem) que tinha “alguma conexão com uma igreja dissidente subterrânea, na companhia de um Magus do século XIX”. Em 1931 ela publicou a obra “Magia Sexualis” de Randolph, também foi mencionada na história da Ordo Templi Orientis Antiqua onde supostamente estudou Vodu com o próprio Jean-Maine.

Eugène Vintras morreu em 7 de dezembro de 1875 em Lyon, deixando para trás seus “Pontifs Divins”, que continuaram esta Igreja subterrânea. De acordo com Tau Charles Harmonius II (Cokinis), “o movimento dessa ecclesia oculta persistiu por todo o século XIX na França e atraiu muitos Grão-Mestres das Ordens Arcanas, que também continuaram a se mover nas sombras dos movimentos místicos e esotéricos deste período fascinante”.

Na terceira parte do nosso texto, em nossa próxima publicação, falaremos enfim sobre Jules Doinel. Até lá!

Referências

Referências
1 Movimento construído em torno da hipótese de que um certo Karl Wilhelm Naundorf, um aventureiro, “emergiu” em Berlim em 1810 e alegou ser filho do rei francês Louis XIV e Maria Antonieta.
2 Uma espécie de rito de purificação no qual onde se buscava a libertação dos grilhões da matéria e a aproximação da redenção espiritual que viria através da Terceira Era.
3 A. E. Waite revela-nos que provavelmente não foi Geoffroi que escreveu.
4 Por exemplo, a interpretação do mito de Lúcifer por H. P. Blavatsky não tem nenhuma correlação com algo sombrio ou de Magia Negra e o mesmo se aplicaria à doutrina de Van Haeckel. Em contrapartida é válido ressaltar que há sim grupos que podem utilizar deste simbolismo para fins negativos, mas não seria este o caso aqui, para Bergerson.

Comentários

Uma resposta para “História dos Desenvolvimentos Gnósticos Modernos – Parte 2”

  1. Lazaro Omena

    É muito oportuno esse resgate histórico sobre o movimento do Vintras, pois até então só conhecia o relato de Stanislas de Guaita, em seu “Templo de Satã”, que dando continuidade ao trabalho de Levi, apresenta-nos esta dissidência como um grupo manipulador, servindo a interesses escusos e contrainiciáticos. É bom quando podemos dispor de vários enfoques para podermos tirar conclusões mais abrangentes sobre as circunstâncias e personagens envolvidos.

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