Adiantei em minha publicação anterior que, inspirado na divisão do Movimento Martinista de Francesco Brunelli, proporia uma divisão para o Movimento Martinista na Rússia. Desmistificarei alguns aspectos da Tradição a partir das informações que, hoje, estão ao nosso alcance. Eu me dedicarei, então, ao que escolhi chamar de Martinismo Antigo Russo e Martinismo Moderno Russo.
No século XVIII, nos momentos demarcados por Brunelli como pertencentes ao Martinismo Primitivo e ao Martinismo Antigo, a nossa corrente iniciática se manifestou na França em três frentes diferentes: a Ordem dos Elus Cohen de Martinez de Pasqually, às vezes referida por Martinezismo, os íntimos de Louis-Claude de Saint-Martin, também chamada de Saint-Martinismo, e o Rito Escocês Retificado de Jean-Baptiste Willermoz ou Willermozismo.
Como sabemos, Saint-Martin conservou a base espiritual Elus-Cohen, mas não a sua prática. Ele estava mais interessado em uma expressão alemã da corrente iniciática que atingiria a Rússia a partir do que chamamos de Círculo de Moscou. De todo modo, alguns russos, sobretudo diplomatas que estiveram na França, mantiveram contato com Saint-Martin e dele receberam a iniciação íntima ou beberam diretamente da sua influência espiritual. Alexander Kurakin, Rodion Koshlev, Sergey Pleshcheyev, Nicholas Repnin, Nicholas Repnin-Volkonsky, George Karneyev e Ivan Inzov são alguns dos nomes que podem ser citados. Curiosamente, como exposto mais adiante, não são eles, justamente os que estiveram diretamente conectados com Louis-Claude de Saint-Martin, que foram chamados como os primeiros martinistas russos. Entre 1778 e 1787, Saint-Martin chegou a empreender uma viagem à Rússia, mas, ainda que relatos tradicionais orais tenham algo a dizer a respeito de suas atividades, detalhes a esse respeito não foram registrados pela história e não sobreviveram.
Um caso especial a ser destacado é o do conde Alexei Borisovich Golitsyn (1732-1792), que conheceu Louis-Claude de Saint-Martin na Suíça em meados da década de 1770. Golitsyn, um amigo próximo do príncipe Troubetskov, inseriu a filosofia que recebera de Saint-Martin no meio maçônico de Moscou do final da década de 1770 em diante. A linhagem transmitida de Saint-Martin para Alexei foi discretamente referida como corrente do Triângulo por iniciados russos sobreviventes da Revolução de 1917 que, por alguns anos, mantiveram um grupo esotérico em Harbin, China. Esse nome, Triângulo, refere-se ao costume tradicional de um professor manter, simultaneamente, dois alunos espirituais que não necessariamente se conhecem. O sobrinho de Alexei, o príncipe (Nicholas Alexseevich) Alexander Golitsyn (1751-1809), conheceu Saint-Martin em uma viagem a Londres em 1785-7. Alexandre também recebeu a transmissão martinezista dos Elus Cohen do diplomata saxão Carl Friedrich Tiemann von Berend, um membro da Sociedade de Avignon. No retorno de Alexander à Rússia, essas correntes foram igualmente introduzidas no ambiente esotérico maçônico de Moscou.
Acredito que está bastante claro ao leitor que, para compreender o recorte histórico ao qual a presente publicação é dedicada, torna-se imprescindível conhecer um pouco do que acontecia na maçonaria russa daquele momento. Na primeira metade do século XVIII, ela era composta principalmente por membros das Estrita Observância Templária alemã e do Rito Maçônico Sueco. O Rito Escocês Retificado, que havia substituído a Estrita Observância Templária na Europa e estava sob a governança de Ferdinand von Brauschweig (1721-1792), chegou à Rússia em 1784. Fazia parte dos planos, desde os primeiros planos do Convento de Wilhelmsbad, que a Rússia se tornasse uma Província do Regime Retificado.
Ainda no século XVIII, ideias oriundas dos Irmãos Asiáticos, cuja origem é encontrada na Rosa+Cruz de Ouro, e dos Cavaleiros da Palestina foram introduzidas na maçonaria russa por Theodore de Tschoudy (1727-1729). Por sua vez, Peter Melessino (1726-1797), com quem Cagliostro aprendeu a respeito do emprego de Columbas em operações mágicas, conduz as atividades dos misteriosos Sacerdotes Templários. O Rito de Melessino é posteriormente desenvolvido no sistema de Clérigos Templários de Johann August Starck e introduzido por Barão de Hund na Estrita Observância Templária como uma espécie de núcleo interior superior que estabeleceria a união destes com os misteriosos Superiores Desconhecidos. No contexto dessas influências todas, interessa-nos conhecer o grupo que ficou conhecido como o Círculo de Novikov, estabelecido em Moscou, e que tem sido erroneamente chamado como o primeiro círculo martinista russo. Faremos isso pela apresentação de suas três principais luzes.
Nicholas Novikov (1744 – 1818), iniciado na maçonaria em São Petersburgo, editou cerca de 700 livros em 20 anos, dentre os quais “Dos erros e da verdade” de Louis-Claude de Saint-Martin. A publicidade que mantinha, por um lado, garantiu que seu nome fosse utilizado para batizar o Círculo esotérico ao qual pertencia, ainda que ele também seja chamado de Círculo de Moscou. Por outro, chamou a atenção das autoridades e o desfecho foi trágico. Graças às censuras impostas pelo Arcebispo Plato (Levchin), sob a ordem da Czarina Catharina, Novikov foi preso e sua vida terminou no exílio.
Iohann George Scharz (1751 – 1784), o segundo personagem e iniciador Rosa-Cruz de Novikov, foi uma peça-chave do Círculo. Schartz teve Johann von Woellner como seu iniciador Rosa-Cruz em Berlim. Ao retornar a Moscou, tornou-se bastante próximo de Nikolai Novikov e tomou parte do Círculo. Com o apoio de Alexander Stroganov, Alexis Rzhevsky e Peter Tatishchey, Scharz liderava a Província Russa do Rito Escocês Retificado. Esse trabalho delimitava-se especificamente nos graus simbólicos ou Loja Azul do Rito. A Ordem Interna dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa, bem como a Ordem Secreta dos Professos e Grão Professos não haviam chegado à Rússia nesse momento. Desse modo, eles não estavam em contato direto com a tradição de Pasqually, que havia sido introduzida na Ordem Secreta. Seja como for, o Rito Escocês Retificado na Rússia existia apenas no papel. Sob essa bandeira, o grupo de maçons que compunham o chamado Círculo de Moscou/Novikov na realidade praticava uma reformulação local dos graus da Rosa+Cruz de Ouro de Sincerus Renatus. O sistema original alemão fora simplificado por eles em um sistema composto por quatro graus, ainda praticado contemporaneamente em círculos muito discretos. O envolvimento com o Rito Escocês Retificado e a publicação de “Dos erros e da verdade” por Novikov, no entanto, foram suficientes para que fossem chamados de martinistas. Na Rússia do final do século XVIII, portanto, havia “martinistas” que, na verdade, não eram martinistas… Havia Lojas do Rito Escocês Retificado e até mesmo uma Província instalada… Mas, factualmente, elas não existiam fora do papel… Mas havia o trabalho secreto da Rosa+Cruz alemã.
O terceiro personagem importante relacionado com o Círculo de Moscou é o de Ivan Lopukhin (1756 – 1816), pai dos Cavaleiros Espirituais ou Buscadores da Sabedoria, um rito cristão esotérico muito devocional e profundo. Lopukhin, junto a Novikov, era membro da Loja da Estrela da Manhã, em Moscou, que praticava o Rito da Estrita Observância Templária. Admirador de Louis-Claude de Saint-Martin, traduziu alguns de seus trabalhos. O Capítulo dos Cavaleiros Espirituais foi o resultado final de um encontro de determinada corrente maçônica (Elus Cohen, Rito Escocês Retificado e Estrita Observância Templária) com a corrente de Saint-Martin (linhagem de Golitsyn), o rosacrucianismo (Rosa+Cruz de Ouro) e a sofiologia da Igreja Ortodoxa Russa.
Outras duas influências no ambiente maçônico dos séculos VXIII e XIX, mais ativas em São Petersburgo do que em Moscou, também merecem ser rememoradas. Joseph-Marie de Maistre (1753 – 1821), monarquista conservador, tornou-se estrela nos salões de São Petersburgo e bastante popular entre os maçons e os chamados “martinistas”. Sua teoria, de natureza conspiratória, propunha a existência dos Illuminati do Estado, da Religião e do Espírito. A missão destes últimos seria a destruição da maçonaria, instituição que, segundo de Maistre, tinha como verdadeiro propósito defender e apoiar o governo. Por sua vez, Tadeusz Leszczyc-Grabianka (1740-1807), levou para São Petersburgo o sistema dos Illuminati de Avignon, um ramo operativo fundado por Dom Antoine-Joseph Perneti (1716-1801). Na Rússia, essa tradição ficou conhecida como a “Nova Israel” e preocupou-se, principalmente, com trabalhos de invocação e de profecia.
Tem-se que, depois do exílio de Novikov, a corrente rosacruciana continuou a ser transmitida, principalmente dentro dos Old Believers e do Doukhobor. A respeito da linha do Triângulo de Golitsyn, ela foi recebida de Aleksandr Golitsyn por Charles Nodier, chefe da biblioteca do Arsenal em Paris e amigo de Eliphas Levi, e transmitida a Paul Christian. Nikolai Mikhailovich Karamzin (1766-1826), associado próximo de Nicholas Roerich, recebeu o Triângulo de Nikolai Sergeevich Golitsyn (1809-1892) e, por meio de sua descendência, a tradição chega a Kokoreff, Maia Romanov e Moebes. Estes três últimos também haviam sido iniciados da Ordem Martinista de Papus, o que inaugura uma nova fase do desenvolvimento do Martinismo na Rússia. Antes de seguirmos por este exame, vejamos as principais influências do Movimento Martinista na Rússia do século XVIII e XIX, que aqui chamamos de Martinismo Antigo Russo:
– Rosa+Cruz de Ouro praticada no Círculo de Novikov em Moscou (reformulação da Ordem em quatro graus);
– As publicações de “Dos erros e da verdade” e de “O homem de desejo” de Louis-Claude de Saint-Martin;
– “Aurora Nascente” e “Christosophia” de Jacob Boheme;
– Iniciação de Buscador da Verdade, “Sketches on the Inner Church” e o Capítulo Hermético de Ivan Lopukhin;
– Cosmogonia e pneumatologia de Martines de Pasqually;
– Filosofia moral cristã do Rito Escocês Retificado;
– As práticas de Teurgia e de clarividência trazidas dos Illuminati de Avignon por Tadeusz Grabiaka;
– Filosofia política ultraconservadora de Joseph de Maistre.
(Continua…)
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