Alma que Foge

O solo pode oferecer à uma nova planta tudo aquilo de que ela necessita para se desenvolver. Ela pode se desenvolver em uma árvore frondosa. A depender da luz disponível, a árvore poderá se inclinar mais para a direita ou para a esquerda. Os ciclos equinociais e solsticiais exercerão grande influência em seu desenvolvimento. A depender da água, das condições ambientais e dos nutrientes disponíveis, a árvore poderá dar muitos ou poucos frutos, saborosos ou não. Ela poderá fornecer sombra a outros seres em um dia ensolarado, mas também poderá ser árvore mirrada, insuficiente para acolher e oferecer conforto a quem a procure. É fato que uma laranjeira fantasiada de macieira não dará maçãs. Quem quiser colher maçãs deve se certificar de estar plantando uma macieira. Se plantar uma, contudo, não lhe será garantido que colherá as maçãs. Alguém desavisado bem poderia pisar na planta recém-plantada e interromper seu fluxo de crescimento.

No nascimento, a nova criança torna-se neófita na vida – “recém-plantada”. Ainda que, tal como na metáfora da planta, vá sofrer a influência exterior, ora positiva, ora negativa, ela está destinada a ser aquilo que é. Ou, ao menos, ser o mais próximo possível de quem de fato é. Esse, na verdade, é um trabalho hercúleo, mas um caminho diferente seria de muita infelicidade e esterilidade espiritual. Quando compreendemos que o estudo e a experimentação do “ser” coincide com o estudo e a experimentação do “Ser”, ou seja, quando nos aproximamos da mística sob um prisma ontológico, entendemos que a vida e o caminho espiritual possuem um objetivo semelhante. E esse mistério é revivido quando um impetrante é iniciado em um processo, cerimonial ou não, de morte e renascimento. Nesse momento, ele é reafirmado enquanto neófito e assume compromisso solene de acelerar seu crescimento espiritual. Na melhor das hipóteses, isso acontece de maneira consciente, mas também é possível que o Iniciado compreenda o caminho da Grande Demanda na medida em que o percorre.

Trago essas reflexões por conta de algo que escrevi em meu post anterior. Naquela ocasião, disse que o caminho da iniciação é repleto de indivíduos que, apegando-se demasiadamente às cascas, às máscaras da personalidade profana, tornam-se sujeitos desalmados, com uma interioridade empobrecida e uma espiritualidade estéril. Esse é um ponto bastante relevante de ser compreendido e, por essa razão, escolhi aprofundá-lo.

Para explicar o sentido que dou às máscaras, bastante influenciado pelas ideias junguianas, mas também pelas de Moreno, um exemplo poderá ser útil. Imaginemos um médico chamado João que reside e trabalha em uma pequena cidade do interior. Imaginemos que, nessa cidade, são poucos os médicos, de sorte que João é por todos conhecidos como “o Dr”. De fato, João é “Dr.”, mas João também é João. E ser João significa que João é um universo todo. Ele, por exemplo, gosta de jogar golfe, ainda que ninguém se atente aos seus gostos mais pessoais. A máscara de “Dr.” se fortalece a cada dia em resposta à grande demanda dos habitantes da cidade e ao lugar social em que João é colocado. Em determinado momento, João passa a não mais se recordar de que gosta de golfe. Agora, ele é apenas o Dr. João. Tornou-se a máscara, indivíduo completamente identificado com um papel que desempenha. Tornou-se um ser desalmado. É dessa maneira que, muitas vezes, a alma se cansa de nós e vai embora.

Recordo-me de alguns diálogos presentes na obra Círculo de Xamãs, de Olga Kharitidi. Dentre eles, selecionei dois trechos da fala da personagem Umai que gostaria de compartilhar:

“Agora vou contar-lhe o maior segredo que conheço. Nós temos a tarefa de construir duas coisas enquanto estamos em nossas vidas físicas. Nossa primeira tarefa é construir a realidade física em que vivemos. A segunda tarefa é a construção de nós mesmos – dessa mesma personalidade que vive dentro da realidade externa. As duas tarefas exigem igual atenção. Manter o equilíbrio entre elas é uma arte muito sagrada e exigente. Assim que esquecemos uma tarefa, a outra pode nos capturar e nos fazer de escravos para sempre.”

Somos mais ou menos proficientes em relação à primeira tarefa em nossa vida. A educação, a escolha profissional, os relacionamentos… A cultura nos ensina a como estarmos adaptados à realidade compartilhada e a construí-la. De certo modo, um manual de instruções nos é apresentado. Com relação à segunda tarefa, podemos contar em nossos dedos as pessoas que conhecemos que realmente estão adaptadas a si mesmas. No empreendimento da primeira tarefa, nos esquecemos da segunda e perdemos nossa alma. Ou, muitas vezes, quando depositamos muita importância à segunda tarefa, nos esquecemos da primeira… Aqui me recordo de muitos iniciados que, no caminho, se alienaram do mundo e passaram a não mais estar adaptados às demandas bastante pragmáticas como as dos boletos que chegam no final do mês. O que escrever, então, a respeito do equilíbrio entre as tarefas?

A outra fala de Umai:

“As doenças da mente só possuem duas causas, e elas são totalmente opostas uma à outra. Uma maneira das pessoas ficarem loucas é se a sua alma, ou parte de sua alma, for roubada. Isso geralmente acontece porque a alma foi roubada delas, mas às vezes elas podem até mesmo decidir inconscientemente entregá-la, talvez em troca de algo mais que elas queiram. A segunda maneira de uma pessoa ficar louca é se ela é subjugada por uma força estranha.”

Uma semelhança poderia ser proposta entre esses dois processos mencionados por Umai e o que a psicologia contemporânea se refere como neurose e psicose. E nisso enxergamos a preciosidade da recomendação de Israel Regardie a respeito de todo iniciado e magista dever se dedicar à sua saúde mental por meio de hábitos, como o da psicoterapia, que conduzem ao autoconhecimento.


Comentários

2 respostas para “Alma que Foge”

  1. Leopoldo Alves de Lima

    Fui obrigado a compartilhar!

  2. Precioso texto, obrigada!

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